■í»í*Í*i&

c-^ci^

t:-' ^.'

..Ií.'i^

M

.■t:

m

■X

1

^\.

t-

-<>

'*

%:

.#

,,

m

..»

F

■?!& B'.

i^-;.B...^.r

^«.^

v.,v ; :

íVi\^

.M-y;,?.;-

I^^*' ^

I

POESIAS

^OTICJíiS, BURLESCAS E SATYRICAS

M. M. DE BARBOSA DU BOCAGE

NAO COMPRF.HENDIDAS NA EDIÇÃO

QUE DAS OriRAS^D'ESTE POETA SE PURLICOU EM LISBOA

NO ANNO DE MDCCGI.Iir

â

BRUXELLAS— MDCCCC

POESIAS

ERÓTICAS, BURLESCAS E SATYRICAS

M. M. DE BARBOSA DU BOCAGE

NAO COMPREHENDIDAS NA EDIÇÁO

QUE DAS OBRAS d'eSTE POETA SE PUBLICOU EM LISBOA

NO ANNO DE MDCCCLIII

ISroVA. EDIÇÃO

BRUXELLAS— MDCCCC

B27AÍ/

/90o

ADVERTÊNCIA PRELIMINAR

Constou que muitas pessoas, que subscreveranvpa- ra a recentíssima edição das Poesias de Bocage, pul)li- cada em Lisboa, e concluida no anno corrente, de- sejosas de possuir tudo o que saliiu da penna de tão peregrino engenho, como que se lastimavam de não poderem juncíar áquella collecção para a tornar com- pleta, as obras do mesmo auctor, que por tractarem de assumptos anti-religiosos, ou pouco conformes á decên- cia e moralidade dos públicos costumes, foram (ao que parece) com acertado fundamento omittidas na referida edição.

Entretanto é facto incontestável que parte d'essas obras teem sido impressas em diversos tempos, e que outras cori-em desde muitos annos pelas mãos dos curiosos em copias mais ou menos viciadas e incorre- ctas, como é de uso em papeis conservados manuscri- ptos, mormente nos de tal natureza. A esta considera- rão veio naturalmente prender-se outra de certo bem

VI ADVERTÊNCIA PRELIMINAR

altendivel, no juizo do julgador imparcial : e é que do principio ao meado do século xix medeia longa distan- cia no perigo de similbantes publicações.

N'esta conjectura alguém se persuadiu de que pres- taria mui agradável serviço aos que ambicionam in- teirar suas collecções offerecendo-lhes estampadas era egual formato, e com a mesma disposição typographica essas composições, de cuja falta tanto lhes pezava : as quaes são, pelo assim dizer, outros taatos documentos indispensáveis para se avaliar cabalmente o mérito do poeta ; conhecer até que ponto chegaram suas aber- rações — e para completar o desenho das diversas fei- ções moraes do seu retrato ; attendendo principalmente a que, conforme a reflexão feita por um juiz com- petente, se as poesias licenciosas de Horácio são os seus únicos versos sem espirito, pelo contrario as de Bocage bastariam de per si a dar-lhe nome o credito, se estes pudessem provir de tal género, ou se a sua gloria não estivera cimentada em mais firmes e se- guros alicerces.

Eis ahi pois os motivos da publicação do presente volume.

Sin-am estas razões de salvo-conducto com que grangeemos obter vénia perante os ânimos sensatos e despreoccupados : quanto áquelles, para quem (na phra- se de um nosso amabiUssimo contemporâneo) é mais alto escândalo escrever um beijo do que tomar cento ; esses teem em si mesmos contra o veneno do livro um preser\-alivo tão fácil quanto infallivel: Não o comprem, nem o leiam, e ficaremos em boa paz.

RIBEIRADA

POEMA EM UM CANTO

ARGUMENTO

Quando o preto Ribeiro entregue ao somno Jazia, lhe apparece o deus Priapo ; E com uma das mãos por ser fanchono, Lhe agarra na cabeça do marsapo ; OíT'rece-lhe depois um bello cono, Gono sem cavallete, gordo e guapo; Casa o preto, e a mulher, por fim de contas, Lhe põe testa retorcidas pontas.

CANTO ÚNICO

I

Acções famosas do fodaz Ribeiro, Preto na cara, enorme no mangalho, Eu pretendo cantar em tom grosseiro, Se a musa me ajudar n'este trabalho: Pasme absorto escutando o mundo inteiro A porca descripção do horrendo malho, Que entre as pernas alberga o negro bruto No lascivo apetite dissoluto.

II

Oh ! musa gallicada e fedorenta ! Tu, que ás fodas d'Apollo estás sujeita. Anima a minha voz, pois hoje intenta Cantar esse mangaz, que a tudo arreita : I)'esse vaso carnal que o membro aquenta. Onde tanta langonha se aproveita, Um chorrilho me dá, oh musa obscena, Que eu com rijo tezão pego na penna.

POEMA

III

Em Tróia, de Setúbal bairro inculto, Mora o preto castiço, de quem fallo ; Cujo nervo é de sorte, e tem tal vulto, Que excede o longo espeto de um cavallo : Sem querer nos calções estar occulto, Quando se enteza o túmido badalo. Ora arranca os botões com fúria rija, Óra arromba as paredes quando mija.

IV

Adorna hirsuto ríspido pentelho Os ardentes colhões do bom Ribeiro, Que são duas maçãs de escaravelho. Não digo na grandeza, mas no cheiro: Alli piolhos ladros tão vermelho Fazem com dente agudo o pau leiteiro. Que o cata muita vez; mas ao tocar-lhe Logo o membro nas mãos entra a pular-lhe.

Os maiores marsapos do universo A vista d'este para traz ficaram : E do novo Martinho era prosa e verso Mil poetas a porra decantaram : Quando ainda o cachorro era de berço Umas moças por graça lhe pegaram Na pica taluda, e de repente Pelas mãos lhes correu a grossa enchente.

10 RIBEIRADA

VI

De Polyophemo o nervo dilatado, Que intentou escachar a Galathéa, Pelo mundo não deu tão grande brado Como a porra do preto negra e feia: Da Cotovia o bando gallicado Com respeito mil vezes o nomeia, E ao soberbo estardalho do selvagem As putas todas rendem vassallagem.

VII

O longo e denso vau da noite escura Das estrellas bordado se via; E em rota cama a horrenda creatura Os tenebrosos membros estendia : Do caralho a grandíssima estatura Cos lençoes encubrir-se não podia, E a cabeça fodaz de fora pondo Fazia sobre o chão medonho estrondo.

VIII

Os ladros, que fieis o acompanhavam, A triste colhoada a cada instante Com agudos ferrões lhe traspassavam, Atormentando a besta fornicante : Na duríssima pelle se entranhavam, Supposto que com garra penetrante O negro dos colhões a muitos saca, E o castigo lhes na fera unhaca.

POEMA 11

IX

Tendo o cono patente no sentido Ka barriga o tezão llie dava murros ; E de activa luxuria enfurecido Espalhava o cachorro afílictos urros: Co'a lembrança do vaso apetecido O nariz encrespava como os burros ; Até que em vão berrando pelo cono, De todo se entregou nas mãos do somno.

X

roncando os visinhos acordava O lascivo animal, que representa Co'o motim pavoroso que formava, Trovão fero no ar, no mar tormenta : Com alternados couces espancava Da pobre cama a roupa fedorenta. Que pulgas esfaimadas habitavam, E de mil cagadellas matisavam.

XI

Eis de improviso em sonhos lhe apparece Terrífica visão, que um braço estende, E pela grossa carne que lhe cresce Debaixo da barriga ao negro prende : Acorda, põe-lhe os olhos, e estremece Gomo quem ao terror se curva e rende: Com o medo que tinha, a porra ingente .Se metteu nas encolhas de repente.

12 RIBEIRADA

XII

Do tremendo phantasma a testa dura Dous retorcidos cornos enfeitavam ; E, debaixo da pansa, a matta escura Três disformes caralhos occupavam : O sujo aspecto, a feia catadura, Os rasgados olhões illuminavam ; E na terrivel dextra o torpe espectro Empunhava uma porra em vez de sceptro,

XIII

Ergue a voz, que as paredes abalava, E co'a força do alento sibilante Mata a pallida luz, que a um canto estava,. Em plúmbeo castigai agonisante: (íOh tu, rei dos caralhos (exclamava) Perde o medo, que mostras no semblante: Que quem hoje te agarra no marsapo É de Vénus o filho, o deus Priapo.

XIV

«Vendo a fome cruel do parrameiro. Que essas negras entranhas te devora, De putas um covil deixei ligeiro. Por fartar-te de fodas sem demora: Consolarás o rígido madeiro N'uma fêmea gentil, que perto mora. Mas não lh'o mettas todo, pois receio Que a possas escachar de meio a meio.»

POEMA 13

XV

Disse ; e o negro da cama velozmente Para beijar-Ihe os pés se levantava; Mas tropeça n'um banco, e de repente No fétido bispote as ventas crava : Não ficando da queda mui contente Co'uma gotta de mijo á pressa as lava; E, acabada a limpeza, a voz grosseira . Ao numen dirigiu d'esta maneira :

XVI

«Soccorro de famintos fodedores, Propicia divindade, que me escutas ! Tu consolas, tu enches de favores O mestre da fodenga, o pae das putas : Viste que, do tezão curtindo as dores, Travava co'o lençol immensas luctas ; E baixaste ligeiro, como Noto, A dar piedoso amparo ao teu devoto.

XVII

«Em quanto houver tezões, e em quanto o cono Fôr de arreitadas picas lenitivo. Sempre hei de recordar-me, alto patrono. De que és de meus gostos o motivo : Pois me dás gloria no elevado throno, E já, como o veado fugitivo Que o caçador persegue, eu corro, eu corro A procurar as bordas por quem morro.»

-14 RIBURADA

XVIII

Deteve aqui a voz o rijo accento, Que dos trovões o estrépito parece, E logo d'ante os olhos n'um momento A nocturna visão desapparece : Deixa Ribeiro o sórdido aposento, Que de antigos escarros se guarnece ; E nas tripas berrando-lhe o demónio Corre logo a tractar do matrimonio.

XIX

O brando coração da fêmea alcança Com finezas, caricias e desvelos; A qual sobre a vil cara emprega, e lança (Tentação do demónio !) os olhos bellos : O fodedor maldito não descança Sem vêr chegar o dia, em que os marmellos Que tem juntos do cu, dêem cabeçadas Entre as cândidas virilhas delicadas.

XX

Chega o dia infeliz (triste badejo! Misera crica! desditoso rabo!) E ornado o rosto de um purpúreo pejo Une-se a mão de um anjo á do diabo: Ardendo o bruto em férvido desejo Unta de louro azeite o longo nabo, Para que possa entrar com mais brandura A vermelha cerviz faminta, e dura.

POEMA - 15

XXI

Principia o banquete, que constava, De dous gatos achados n'uin monturo, E de raspas de corno, de que usava Em logar de pimenta o preto impuro : Em sujo frasco alli se divisava Turva agua : fatias de pão duro Pela mezá decrépitas espalhadas A fraca vida perdem ás dentadas.

XXII

Depois de ter o esposo o bucho farto. Abrasado de amor na ardente chamma. Foge com leves passos para o quarto. Ao collo conduzindo a bella dama : Pelas ceroulas o voraz lagarto A genital enxúndia derrama; por ver da consorte o gesto lindo Inda antes de foder se está vindo !

XXIII

Jazia o velho thalamo n'um canto Onde de pulgas esquadrão persiste, Para theatro ser do afflicto pranto Que havia derramar a esposa triste : Oh noute de terror, noute de espanto, Que das fodas cruéis o estrago viste ! Permitte que com métrica harmonia Patente ponha tudo á luz do dia.

10 RIBEIRADA

XXIV

Ergue-lhe a saia o renegado amante, Estira-se a consorte ágil, e prompta; E elle a setta carnal no mesmo instante Ao parrameiro misero lhe aponta: Go'um beijo do membro palpitante Ficou subitamente a moça tonta, E julgou (tanto em fogo ardia o nabo !) Que encerrava entre as pernas o diabo.

XXV

Prosegue o desalmado; mas a esposa Que não pode aturar-lhe a dura estaca, Dando voltas ao cu muito chorosa Com geito o membralhão das bordas sacca ; Elle irado lhe diz, com voz queixosa: tf Não és uma mulher como uma vacca? Porque fazes traições, quando te empurro O mastro? quando vês que gemo, e zurro?»

XXVI

Então, cheio de raiva, aperta o dente, E na gostosa, feminil masmorra, Alargando-lhe as pernas novamente, Com estrondosos ais encaixa a porra : Ella, que no corpo o fogo sente Do marsapo, lhe diz : « Queres que eu morra ? Tu não vês que me engasgo, e que estou rouca. Porque o cruel tezão me chega á boca?

POEMA 1 7

XXVII

«Ah! deixa-me tomar um breve alento, 'Primeiro que rendida e morta caia. . . » Mas elle, na foda é um jumento, Não tem da mulher, que desmaia : Sentindo ser chegado o fim do intento, Do ranhoso licor lhe inunda a saia ; Porque dentro do vaso não cabia A torrente, que rápida corria.

XXVIII

De gosto o vil cachorro então se baba, E vendo que a mulher calada fica, «Gonsola-te (exclamou) que se acaba Esta fome voraz da minha pica. o E com muita risada então se gaba De lhe ter esfoUado a roxa crica ; Mas ella grita, ardendo-lhe o sabugo : «Ora que casasse eu com um verdugo !

XXIX

«Fora, fora, cachorro, não te aturo Que me fere as bordas do coninho ! » E com desembaraço um tezo, e duro Bofetão lhe arrumou pelo focinho : Tomou em tom de graça o monstro escuro A affrontosa pancada, e com carinho Disse para a mulher : «Brincas comigo ! Pois torno-te a foder, por teu castigo.»

18 RIBEIRADA

XXX

Estas vozes ouvindo a desgraçada De repente no chão cahir se deixa ; E, temendo a mortifera estocada, Oi'a abra os tristes olhos, ora os fecha : Com suspiros depois desatinada Da contraria fortuna alh se queixa: Até que elle lhe diz, com meigo modo : ((Levanta-te do chão, que não te fodo.»

XXXI

Ahiia nova cobrou, qual lebre afílicta, Que das unhas dos cães se liberta; E apalpando a conaça (oh que desdita !) Mais que bocca de barra a encontra aberta Mas consola-se um pouco, e medita Em fugir da ruina, que é tão certa ; E em vingar-se do horrível Brutamonte. Ornando-lhe de cornos toda a fronte.

XXXII

Tem conseguido a barbara vingança A traidora mulher, como queria; E o negro com paciência branda e mansa, SoíTrendo os cornos vai de dia em dia : Bem mostra no que faz não ser creança, Que de nada o rigor lhe serviria; Porque se uma mulher quizer perder-se. Até feita em picado ha de foder-se.

POEMA 19

XXXIIl

Agora vós, fodões encarniçados. Que julgaes agradar ás moças bellas Por terdes uns marsapos, que estirados Vão pregar c'os focinhos nas canellas: Conliecereis aqui desenganados Que não são taes porrões do gosto d'ellas ; Que lhes não pode, em fim, causar recreio Aquelle, que passar de palmo e meio.

A MANTEIGUI

POEMA EM UM SO CANTO

ARGUMENTO

Da grande Manteigui, puta rafada, Se descreve a brutal incontinência; Do cafre infame a porra desmarcada, Do cornigero esposo a paciência : Como á força de tanta caralhada Perdendo o negro a rigida potencia, Foge da puta, que sem alma fica .Dando mil berros por amor da pica.

CANTO ÚNICO

I

Canto a belleza, canto a putaria De um corpo tão gentil, como profano ; Corpo, que, a ser preciso, enguliria Pelo vaso os martellos de Vulcano : Corpo vil, que trabalha mais n'um dia Do que Martinho trabalhou n'um anno; E que atura as chumbadas e pelouros De cafres, brancos, maratás, e mouros.

II

Vénus, a mais formosa entre as deidades, Mais lasciva também que todas elias ; Tu, que vinhas de Troya ás soledades Dar a Anchises as mammas e as canellas : Que grammaste do pae das divindades Mais de seiscentas mil fornicadellas ; E matando uma vez da crica a sede. Foste pilhada na vulcanea rede ;

POEMA 23

III

Dirige a minha voz, meu canto inspira, •Que vou cantar de ti, se a Jacques canto ; Tendo um corno na mão em vez de lyra, Para livrar-me do mortal quebranto : Tua virtude em Manteigui respira, Com graça, qual tu tens, motiva encanto ; E bem pode entre vós haver disputa •Sobre qual é mais bella, ou qual mais puta,

IV

No cambayco Damão, que escangalhado Lamenta a decadência portugueza, Este novo Ganós foi procreado, Peste d' Ásia em luxuria e gentileza: Que ermitão de cilícios macerado Pode ver-lhe o carão sem porra teza ? Quem chapeleta não terá de mono, Se tudo que alli c tudo cono ?

Seus meigos olhos, que a foder ensinam, nos dedos dos pés tezões accendem; As mammas, onde as Graças se reclinam, Por mais alvas que os véus os véus oíTendem ; As doces partes, que os desejos minam, Aos olhos poucas vezes se defendem ; E os Amores, de amor por ella ardendo, .As picas pelas mãos lhe vão mettendo.

A MANTEIGUI

VI

Seus cristalinos, deleitosos braços, Sempre abertos estão, não para amantes, Mas para aquelles só, que, nada escassos, Cofres lhe atulham de metaes brilhantes ; As niveas plantas, quando move os passos, . Vão pizando os tezões dos circumstantes ; E quando em ledo som de amores canta, Faz-lhe a porra o compasso co'a garganta.

VII

Mas para casligar-lhe a vil cobiça O vingativo Amor, como aggravado. Fogo infernal no coração lhe atiça Por um sórdido cafre asselvajado : Tendo-lhe visto a tórrida linguiça Jlais extensa que os canos d'um telhado, Louca de comichões a indigna dama Salta n'elle, convida- o para a cama.

VIII

Eis o bruto se coça de contente; Vermelha febre sobe-lhe ao miolo ; Agarra na senhora, impaciente D'erguer-lhe as fraldas, e provar-lhe o bolo : Estira-a sobre o leito, e de repente Quer do panno sacar o atroz mampolo: Porem não necessita arrear cabos; vai o langotim com mil diabos.

POEMA 25-

IX

Levanta a tromba o ríspido elephante, A tromba, costumada a taes batalhas, E apontando ao buraco palpitante, Bate ali qual aríete nas muralhas : Ella enganchando as pernas delirante, «Meu negrinho (lhe diz) quão bem trabalhas! Não ha porra melhor em todo o mundo! Mette mais, mette mais que não tem fimdo,

X

«Ah! se eu soubera (contínua o couro Em torrentes de sémen nadando) Se eu soubera que havia este thesouro Ha que tempos me estava regalando ! Nem fidalguia, nem poder, nem ouro Jleu duro coração faria brando; Lavara o cu, lavara o passaiinho. Mas pai'a foder co'o meu negrinho.

XI

«Mette mais, mette mais... Ah Dom Fulano!' Se o tivesses assim, de graça o tinhas ! Não viveras em um perpetuo engano, Pois vir-me-hia também quando te vinhas : Mette mais, meu negrinho, anda magano; Ghupa-me a língua, meche nas mamminhas. . . Morro de amor, desfaço-me em langonha. . . Anda, não tenhas susto, nem vergonha.

26 A MANTEIGUI

XII

«Ha quem fuja de carne, ha quem não morra Por tão bello e dulcíssimo trabalho? Ha quem tenha outra idéa, ha quem discorra Em cousa, que não seja de mangalho? Tudo entre as mãos se converta em porra, Quanto vejo transforme-se em caralho: Porra, e mais porra no verão, e no inverno. Porra até nas profundas do inferno!. . .

XIII

cMette mais, mette mais (ia dizendo A marafona, ao bruto, que suava, E convulso fazia estrondo horrendo Pelo rústico som com que fungava:) Mette mais, mette mais que estou morrendo!... ff Mim não tem mais ! r> O negro lhe tornava; E triste exclama a bêbeda fodida : «Xão ha gosto perfeito n'esta vida!»

XIV

ís'este comenos o cornaz marido, O bode racional, veado humano, Entrava pela camará atrevido Como se entrasse n'um logar profano: Mas vendo o preto em jogos de Cupido, Eis sahe logo, dizendo: «Arre, magano! Na minha cama! Estou como uma braza! Mas, bagatella, tudo fica em casa.»

POEMA 27

XV

A foda começada ao meio dia Teve limite pelas seis da tarde. Veio saltando a nympha de alegria, E de sórdida acção fazendo alarde : O bom consorte, que risonha a via, Lhe diz : « Estás corada ! O ceu te guarde ; Bem boa alpistre ao pássaro te coube I Ora dize, menina, a que te soube?»

XVI

«Gale-se, tolo» (a puta descarada Grita n'um tom raivoso, e lhe rezinga) O rei dos cornos a cerviz pezada Entre os hombros encolhe, e não respinga: E o courão, da pergunta confiada, Outra vez com o cafre, e mil se vinga, Áté que elle, faltando-lhe a semente, Tira-lhe a mamma, e foge de repente.

XVII

Deserta por temor d'esfalfamento. Deserta por temer que o couro o mate : EUa então de suspiros enche o vento, E faz alvorotar todo o Surrate: Vão procural-o de cipaes um cento, Trouxeram-lhe a cavallo o tal saguate; EUa o vai receber, e o grão Nababo Pasmou d'isto, e quiz vêr este diabo.

28 A MANTEIGUI

XVIII

Pouco tempo aturou de novo em casa O cão, querendo logo a pelle forra, Pois a pula co'a a crica toda em braza, Nem q'ria comer, queria porra: Voou-lhe, qual falcão batendo a aza, E o courão. sem achar quem a soccorra. Em lagrimas banhada, accêza em fúria, Suspira de saudade, e de luxuria.

XIX

Gourões das quatro partes do universo^ De gallico voraz envenenados! Se d'este canto meu, d'este acre verso Ouvirdes por ventura os duros brados : Era bando marcial, coro perverso. Vinde vêr um carjão dos mais pescados. Vinde cingir-lhe os louros, e devotos Beijar-lhe as azas, pendurar-lhe os votos..

A EMPREZA NOCTURNA

Era alta a noite, e as beiras dos telhados

Pingando mansamente convidavam

A gente toda a propagar a espécie :

Brandas torrentes, que do ceu cabiam

Pelas ruas abaixo susurravara ;

Dormia tudo; e a ronda do intendente

Que o grão Torquato rege, o pae das putas,

Esbirro-mór, Mecenas das tabernas,

Recolhido se havia aos pátrios lares.

Era tudo silencio, e se ouvia

De quando em quando ao longe uma matraca.

Soava o sino grande dos Capuchos,

Vão-se os frades erguendo, era uma hora.

Não podia faltar: Nise formosa,

Pela primeira vez m 'estava esperando.

De repente me visto, e salto fora

Da pobre cama, aonde envolto em sonhos

Mil imagens a mente me fmgia.

30 A EMPREZA

Visto roupa lavada, e me perfumo, N'um capote me embuço, a espada tomo, Que nunca me serviu, mas que em taes casos Mette a todos respeito ; e qual Quixote, Que, havendo perdido o caro Sanclio, Sem nada receiar de assalto busca Altos moinhos, que valente ataca; Tal eu figuro achar a cada esquina Um Rodamonte, e prompto me disponho A lançal-o por terra, em desfeito. Assim gastei o tempo, até que chego Ao sitio dado, onde meu bem m'espera.

Mal a porta emboquei, dentro em mim sinto Um fogo activo, que me abraza todo. Eis de Nise a criada, abelha mestra, Que á mira estava alli, a mão me aperta, Vai-me guiando, e diz: «Suba de manso. Que ahi dorme a senhora.» A poucos passos. Por acaso ao subir-lhe apalpo as coxas... Oh caspite! que sesso! Era alcatreira. Nunca vi cu tão duro, era uma rocha. Foi o tezão então em mira tão forte, Que as mãos lhe encosto aos hombros, n'ella saltOy Que enfadada dizia: «Olhe o bregeiro! . . . Tire-se lá, que pôde ouvir minha ama!. . Ao dizer isto a voz lhe fica presa. Soluça, treme toda, estende os braços, Aperta as pernas, encarquillw. o cono, Que distava do cu pollegada e meia. Qual moinho de cartas, que os rapazes

NOCTURNA 31'

Em tempo de verão põem nas janellas,

Tal a moça rebolla: e eu posto em cima,

Sem nada lhe dizer, tinha vertido

Na larga dorna a larga apojadura.

Acabada a fancção, em que a moçoila

(Segundo confessou) deu três por uma,

N'um quarto me encaixou, onde os Amores

Tinham sua morada, onde Cupido

Havia receber em seus altares

Em breve espaço meus amantes votos. Dormia tudo em casa : eis Nise bella

Um pouco envergonhada, assim ficando IMais vermelha que a rosa, a mim se chega.

Nos meus braços se lança: então lhe toco

No tenro, e branco seio palpitante ; Trémula a voz, que o susto lhe embargava. Mal me pôde dizer: «Meu bem, minh'alma «Quanto pôde o amor n'um peito firme ! «Bem vês ao que me arrisco : eu bem conheço (f Quanto oíTendo o meu sexo, e as leis da honra «Bem sei que despedaço ! . . . Mas não temo «Que te esqueças de mim, que ufano zombes «D'uma infeliz mulher amante, e fraca ! . . . » Em quanto assim fallava, me prendia Nise c'os braços seus, e aos meus joelho» As pernas encostava, que eu conheço Pelo tacto, que são rijas, e grossas.

]\Ial podia conter-me : o ceu chuvoso Pelas telhas cahia; o vento rijo Pelas frestas zunia; a casa toda

.52 A EMPREZA

Com cheiro de alfazema ; a cama fofa,

Tudo em fim era amor, tudo arreitava.

Entro a beijar-lhe as mãos feitas de neve,

Descubro-liie com geito o tenro peito,

Que ancioso palpita, que resiste.

Que não murcha ao tocar-se; oh quanto é bella!

No seio virginal, onde dois globos

Mais brancos do que jaspe estão firmados,

Ancioso beijando-os, pouco a pouco

Se fizeram tão rijos que mal pude

Comprimil-os c'os beiços ; n'esle tempo

Pelo fundo da saia subtilmente

Lhe introduzi a mão, com que esfregava

O pentelho em redondo, o mais hirsuto

Que atéli encontrei; e como a crica

Vertido tinha pingas ardentes,

Certos signaes, que os fervidos prazeres

Dentro n'alma de Nise á lucta andavam.

Tal fogo em mim senti, que de improviso

Sem nada lhe dizer me fui despindo,

ficar nu em pello, e o membro feito.

Na cama m'encaixei, qu'a um lado estava.

Nise, cheia de susto, e casto pejo,

De receio, e luxuria combatida,

Junto a mim se assentou, sem resolver-se.

Eu mesmo a fui despindo, e fui tirando Quanto cubria seu airoso corpo. Era feito de neve : os hombros altos, O colo branco, o cu roliço e grosso ; A barriga espaçosa, o cono estreito.

NOCTUUNA 33

O pentelho mui denso, escuro, e liso; Coxas pyramidaes, pernas roliças, O pequeno. . . Oh céos ! Gomo é formosa ! mettidos na cama em nivea hoUanda, Erguido o membro tocir no umbigo, <3ual Amadis de Gaula entrei na briga: Pentelho com pentelho ambos unidos, Pi"esa a voz na garganta, ardente fogo Exhalavamos ambos; Nise bella Ou fosse natural, ou fosse d'arte, O peito levantado, anciosa, aíTlicta, Tremia, soluçava, e os olhos bellos Semi-mortos erguia : a còr do rosto Pouco a pouco murchava ; era tão forte, Tão activo o prazer, que ella sentia, Que, cingindo-me os rins c'os alvos braços, Tanto a si me prendia, que por vezes O movimento do cu me embaraçava : Co'as alvas pernas me apertava as coxas, Titilava-lhe o cono, e reclinada Quasi sem tino a languida cabeça, Chamando-me seu bem, sua alma e vida, Faz-me ternas meiguices, brandos mimos ; Fervidos beijos, mutuamente dados, Anhelantes suspiros se exhalavam: Era tudo ternura; e em breve espaço Ao som de queixas mil, com que intentava Mostrar-me Nise um damno irreparável. Me senti quasi morto em todo o corpo : Uma viva emoção senti gostosa

3

34 A EM PREZA

Dentro em ininh'alina: férvidos prazeres

O peilo vivamente me agitavam :

Os olhos, e a voz amortecida,

Os braços frouxos, quasi moribundos,

Languido o corpo todo, em fim mal pude

Saber o que fazia. . . Eis de improviso

Tornando a mim mais forte, e mais robusto.

Tentei de novo o campo da batalha:

Qual o bravo guerreiro, que se abrasa

No cálido vapor, que exhala o sangue

Que elle mesmo esparsiu entre as phaianges

De ini:]iigos cruéis, que vence, e mata;

Assim eu, abrasado em vivo fogo

Que de Niss sahia, me não farto

Da guerra, que intentei : de novo a aperto,

De novo beijo os seus mimosos braços;

Beijo-lheos olhos, a mimosa bocca.

Os niveos peitos, a cintura airosa;

Nise outro tanto me fazia alegre,

Estreitava-me a si por vários modos:

Ora posto eu por baixo, ella por cima,

Para dar doce allivio aos membros lassos ;

Ora posto de ilharga, sem que nunca

O voraz membro do logar sahisse,

Onde uma vez entrara altivo e forte,

O membro, tjue em tal caso era mais duro

Que alva columna de marmóreo jaspe:

Até que em fim, depois de não podermos

Nem eu, nem Nise promover mais gostos,

O brando somno, sobre nós lançado

NOCTURNA 35

Os seus doces influxos brandamente, Os olhos nos cerrou. Uns leves sonhos Vieram animar nossos sentidos, que chegou a fresca madrugada, Em que á casa voltei d'onde sahira; E tornando outra vez á pobre cama, Dormi o dia inteiro a somno solto.

EPISTOLA A MARÍLIA

I

Pavorosa illusão da Eternidade, Terror dos vivos, cárcere dos mortos ; D'almas vãs sonho vão, chamado inferno; Systema da politica oppressora, Freio, que a mão dos déspotas, dos bonzos Forjou para a boçal credulidade ; Dogma funesto, que o remorso arreigas Nos ternos corações, e a paz lhe arrancas: Dogma funesto, detestável crença. Que envenenas delicias innocentes! Taes como aquellas que no céo se fmgem: Fúrias, Cerastes, Dragos, Gentimanos, Perpetua escuridão, perpetua chanima, Incompatíveis producções do engano. Do sempiterno horror horrível quadro, (Só terrível aos olhos da ignorância)

A MARÍLIA 37

Não, não me assombram tuas negras cores, Dos homens o pincel, e a mão conheço: Trema de ouvir sacrílego ameaço Quem d'um Deus quando quer faz um tyranno : Trema a superstição; lagrimas, preces. Votos, suspiros arquejando espalhe. Goza as faces co'a terra, os peitos íira, Vergonhosia piedade, inútil" vénia Espere ás plantas de impostor sagrado, Que ora os infernos abre, ora os ferrolha : Que ás leis, que as propensões da natureza Eternas, immutaveis, necessárias. Chama espantosos, voluntários crimes; Que ás ávidas paixões que em si fomenta, Aborrece nos mais, nos mais fulmina : Que molesto jejum, roaz cilicio Com despótica voz á carne arbitra, E, nos ares lançando a fútil benção, Vai do gran tribunal desenfadar-se Em sórdido prazer, venaes delicias, Escândalo de Amor, que dá, não vende.

II

Oh Deus, não oppressor, não vingativo. Não vibrando com a dextra o raio ardente Contra o suave instincto que nos deste; Não carrancudo, ríspido, arrojando- Sobre os mortaes a rígida sentença, A punição cruel, que excede o crime>

;iá EPISTOLA

Até na opinião do cego escravo,

Que te adora, te incensa, e crê que és duro!

Monstros de vis paixões, damnados peitos

Regidos pelo sôfrego interesse

(Alto, impassivo numenlj te attribuem

A cólera, a vingança, os vícios todos

^'egros enxames, que lhe fervem n'alma!

Quer sanhudo, ministro dos altares

Dourar o horror das barbaras cruezas,

Cobrir com veu compacto, e venerando

A atroz satisfação de antigos ódios.

Que a mira põem no estrago da innocencia.

Ou quer manter aspérrimo dominio,

Que os vaivéns da razão franqueia e nutre:

Eil-o, em sancto furor toJo abrazado.

Hirto o cabello, os olhos côr de fogo,

A maldição na bocca, o fel, a espuma,

Eil-o, cheio de um Deus tão mau como elle,

Eil-o citando os hórridos exemplos

Em que aterrada observe a phantasia

Um Deus o algoz, a viclima o seu povo :

No sobr'oiho o pavor, nas mãos a morte.

Envolto em nuvens, em trovões, em raios

De Israel o tyranno omnipotente :

brama do Sinay, treme a terra!

O torvo executor dos seus decretos,

Hypocrita feroz, Moysés astuto.

Ouve o terrível Deus, que assim troveja :

cVae, ministro fiel dos meus furores !

Corre, vòa a vingar-me: seja a raiva

A MAI.ILIA

^A

De esfaimados leões menor que a tua:

Meu poder, minhas forças te confio,

Minha tocha invisivel te precede:

Dos Ímpios, dos ingratos, que me oíTendem,

Na rebelde cerviz o ferro ensopa :

Extermina, destroe, reduz a cinzas

As sacrílegas mãos, que os meus incensos

Dão a frágeis metaes, a devises surdos :

Sepulta as minhas victimas m inferno,

E treme, se a vingança me retardas ! . . . »

Não lh'a retarda o rábido propheta:

corre, vozèa, diíTunde

Pelos brutos, attonitos sequazes

A peste do implacável fanatismo:

Armam-se, investem, rugem, ferem, matam,

Que sanha! que furor! que atrocidade !

Foge dos corações a natureza;

Os consortes, os pães, as mães, os fdhos

Em honra do seu Peus consagram, tingem

Abominosas mãos no parricidio :

Os campos de cadáveres se alastram,

Sussurra pela terra o sangue em rios,

Troam no polo altíssimos clamores.

Ah! Bárbaro impostor, monstro sedento

De crimes, de ais, de lagrimas, d'estragos,

Serena o phrenesi, reprime as garras,

E a torrente de horrores, que derramas,

Para fundar o império dos tyrannos,

Para deixar-lhe o feio, o duro exemplo

De opprimir seus eguaes com férreo jugo

40 EPISTOLA

Nãò profanes, sacrílego, não manches Da eterna divindade o nome augusto ! Esse, de quem te ostentas tão valido, É Deus do teu furor, Deus do teu génio. Deus creado por ti, Deus necessário Aos tyrannos da terra, aos que te imitam, E áquelles, que não crêem que Deus existe.

III

N'este quadro fatal bem vês, l\larilia,

Que em tenebrosos séculos envolta

Desde áquelles cruéis, infundes tempos

Dolosa tradição passou aos nossos.

Decoração, da idéa, ah ! desarreiga

De astutos mestres a falaz doutrina,

E de crédulos pães preoccupados

As chimeras, visões, phantasinas, sonhos :

Ha. Deus, mas Deus de paz. Deus de piedade,

Deus de amor, pae dos homens, não flagello.

Deus, que ás nossas paixões deu ser, deu fogo.

Que não leva a bem o abuso d'ellas.

Porque á nossa existência não se ajusta,

Porque inda encurta mais a curta vida:

Amor é lei do Eterno, é lei suave ;

As mais são invenções, são quasi todas

Contrarias á razão, e á natureza:

Próprias ao bem d'alguns, e ao mal de muitos.

Natureza, e razão jamais diferem:

Natureza, e razão movem, conduzem

A MARÍLIA 41

A dar soccorro ao pallido indigente,

A pôr limite ás lagrimas do afflicto,

E a remir a innocencia consternada,

Quando nos débeis, magoados pulsos

Lhe roxea o vergão de vis algemas :

Natureza, e razão jamais approvam

O abuso das paixões, aquella insânia,

Que pondo os homens ao nivel dos brutos,

Os infama, os deslustra, os desacorda.

Quando aos nossos eguaes, quando uns aos outros

Traçámos fero damno, injustos males

Em nossos corações, em nossas mentes,

És, oh remorso, o precursor do crime,

O castigo nos antes da culpa.

Que na execução do crime existe.

Pois não pode evitar-se o pensamento,

E é innocente a mão, que se arrepende.

Não vem d'um principio acções oppostas:

Taes dimanam de um Deus, taes do exemplo,

Ou do cego furor, moléstia d'alma.

IV

Crê pois, meu doce bem, meu doce encanto.

Que te anceam phantasticos terrores,

Pregados pelo ardil, pelo interesse.

de infestos mortaes na voz, na astúcia

A bem da tyrannia está o inferno.

Esse, que pintam barathro de angustias.

Seria o galardão, seria o premio

42 EPISTOLA

Das suas vexações, dos seus embustes, E não pena de amor se inferno houvesse. Escuta o coração, Marília bella, Escuta o coração, que te não mente : Mil vezes te dirá: «Se a rigorosa Carrancuda expressão de uni pae severo, Te não deixa chegar ao caro amante Pelo perpetuo nó, que chamam sacro. Que o bonzo enganador teceu na idéa Para também no amor dar leis ao mundo ; Se obter não podes a união solemne, Que allucina os mortaes, porque te esquivas Da natural prisão, do terno laço Que com lagrimas e ais te estou pedindo? Reclama o teu poder, os teus direitos Da justiça despótica extorquidos: Não chega aos corações o jus paterno. Se a chamma da ternura os aíYoguya : De amor ha precisão, ha liberdade ; Eia pois, do temor saccode o jugo, Acanhada donzella; e do teu pejo Destra illudindo as vigilantes guardas, Pelas sombras da noute, a amor propicias. Demanda os braços do ancioso Elmano, Ao risonho prazer franquêa os lares. Consista o laço na união das almas ; Do ditoso hymenèo as venerandas Caladas trevas testemunhas sejam; Seja ministro o Amor, e a terra templo Pois que o templo do Eterno é toda a terra.

A MARÍLIA 43

Entrega-te dspois aos teus transportes, Os oppressos desejos desafoga. Mata o pejo importuno : incita, incita O que de prazer merece o nome. Verás como, envolvendo-se as vontades, Gostos eguaes se dão, e se recebem : Do jubilo ha de a força amortecer-te, Do jubilo ha de a força aviventar-te. Sentirás suspirar, morrer o amante, Com os seus confundir os teus suspiros, Has de morrer, e reviver com elle. De tão alta ventura, ah ! não te prives, Ah! não prives, insana, a quem te adora.» Eis o que has de escutar, oh doce amada, Se á voz do coração não fores surda. De tuas perfeições enfeitiçado Ás preces, que te envia, eu uno as minhas, Ah! Faze-me ditoso, 8 ditosa. Amar é um dever, além de um gosto, Unia necessidade, não um crime, Qual a impostura horrisona apregoa. Géos não existem, não existe inferno, O premio da virtude é a virtude, É castigo do vicio o próprio vicio.

FRAGy[NÍO DE ÍLGÍU, POEIft GR[GO

TRADUZIDO DA IMITAÇÃO FRANCEZA DE MK. PARNV

Imaginas, meu bem, suppões, oh Lilia, Que os benéficos céos, os céos piedosos Exigem nossos ais, nossos suspiros Em vez de adorações, em vez d'incenso3? Crédula, branda amiga, é falso, é falso: Longe a cega illusão. Se ambos sumidos Em solitário bosque, e misturando Doces requebros c'os murmúrios doces Dos transparentes, gárrulos arroios, Sempre me ouvisses, sempre me dissesses Que és minha, que sou teu; que mal, que oíTensa Nosso innoeente amor faria aos Numes? Se acaso reclinando-te commigo Sobre viçoso thalamo de flores,

FflAG.VIENTO DE ALGEU

Turvasse nos teus olhos carinhosos

Suave languidez a luz suave:

Se os doces lábios teus entre meus lábios

Fervendo, grata Lilia, me espargissem

Vivissimo calor nas fibras todas;

Se pelo excesso de ineíTaveis gostos

Morrêssemos, meu bem, d'uma morte;

E se amor outra vez nos desse a vida

Para expirar de novo : em que peccára,

Em que aílYontára aos céos prazer tão puro ?

A voz do coração não tece enganos,

Não é reu quem te segue, oh Natureza:

Esse Jove, esse deus, que os homens pintam

Soberbo, vingador, cruel, terrível:

Em perpetuas delicias engolphado,

Submerso em perennal tranquillidade

Go'as acções humanas não se embaraça;

Fitos seus olhos no universo todo,

Em todos os mortaes, n'um não param :

As vozes da razão prefiro, oh Lilia!

É lei o amor, necessidade o gosto :

Viver na insipidez é erro, é crime.

Quando amigo prazer se nos franqueia.

II

Eia ! Deixemos á vaidade insana Gorrendo-se da rápida existência Sem susto para si crear segunda : Deixemos-lhe entranhar por vãs chimeras,

4U FRAGMENTO DE ALGEU

Pela immortalidade os olhos ledos :

E do seu phrenesi, meu bem, zombemos.

Esse abysino sem fundo, ou mar sem praia

Onde a morte nos lança, e nos arroja,

Guarda perpetuamente tudo, oh Lilia,

Tudo quanto lhe cae no bojo immenso.

Em quanto dura a vida ah ! sejam, sejam

Nossos os prazeres, os Elysios nossos.

Os outros não são mais que um sonho alegre,

Uma invenção dos reis ou dos tyrannos.

Para curvar ao jugo os brutos povos :

E o que a superstição nomeia averno,

E á multidão fanática horrorisa ;

As fúrias, os dragões, e as chammas fazem

Mais medo aos vivos do que mal aos mortos.

ARTE DE AMAR

OtJ

PRECEITOS, E REGRAS AMATORIAS

PARA AGRADAR AS DAMAS

IMITAÇÃO DE OVÍDIO

I

Se, lascivos do mundo, amais sem arte, Lede meus versos, amareis com ella. Tu, louro Apollo, me tempera a lyra, Tu, branda Vénus, a cantar me ensina. Qaanto nos reinos de Plutão deseja Tântalo ardente mitigar a sede ; Quanto suspira Promethéo, que Jove Os duros ferros, com que o prende, rompa; Tanto deseja a feminina turba Ao corpo varonil unir seu corpo; Tanto suspira por que mão lasciva Meiga Ibe toque nas coliminas lisas, E que mimoso, petulante dedo

4S ARTE

Lhe amolgue os tezos seus virginios peitos. Em Junho ardente pelo seu consorte Clama, suspira e.n verde ramo a rola; Em gelado Janeiro clama triste A domestica tigre por marido : Brama nos campos em sereno maio Mansa novilha por amado touro. Sabia Natura o débil sexo excita. Torpes desejos com ardor provoca; Mas sempre firme e simulada nega Carnal impulso geração de Pyrrha. Busca Diana Endyraião nos bosques, Mas finge ousada perseguir as feras ; Ardente Vénus prazer respira, Mas seus favores sollicita Marte ; Serrana humilde reclinar deseja Nos doces braços de um vaqueiro o collo ; Mas d'elle foge, na montanha, esquiva, Com elle o baile festival recusa.

II

Tu, próvido Lycurgo, ou quem primeiro A vaga turba legislou dos homens, Severo alçando temeroso ferro Duro reprimes da natura os gritos; A face mulheril, immovel d'antes, Pudibundo rubor e pejo destes: Mas ah ! não tema varonil caterva Femineo pejo, sendo eu o seu mestre.

DE AMAR 49

Corta o duro machado erguido tronco,

Mas vejo sempre pullular vergonteas;

Diques forçosos contra o mar se elevam,

Mas alem d'elles delphins mansos nadam.

Pode mais do que as leis a Natureza,

Pratica o mundo o que ella dieta;

Faz-se escondida em quanto a não descobrem ;

Eu subtil mestre a descobril-a ensino.

Ah! não me chamem críticos austeros

Dos boas costumes corruptor profano,

Ah ! não me mande Gesar irritado

No frio Euxino a viver c'os Getas.

Outra cousa não faz duro colono

Com liso arado, quando rompe a terra:

Dura côdea o calor nativo impede,

O ferro a rasga, e o calor transpira.

III

Vós, mancebos, correi, correi ligeiros Do Tibre ás margens férteis, e mimosas. Tão immoveis me ouvi, mas não tão surdos : Direi primeiro como xVmor se enleia, Depois como se faz propicia Vénus. Tu, oh Jove immortal, tu, pae dos deuses, Sábio me inspira, que não basta Apollo. É verde louro fugitiva Daphne, Amor ingrato do queixoso Phebo ; Tu, selvático filho de Saturno, tu não temes desdenhosas iras :

4

50 ARTE

Ou chuva d'OMro a bella Danae molhas, Ou touro manso linda Europa roubas. A face mulheril formosa, e pura Cobrem de pejo avermelhadas rosas ; Ou dedo juvenil destro as desfolhe, Ou cálido vapor soprando as murche : Então lasciva, sem rebuço exposta Fácil se entrega, sem temor se arroja: Então tu, louro Apollo, serás Daphne, A nympha fugitiva será Phebo. Apoz o bruto filho de Neptuno Correrá Galathéa os verdes mares ; Assim foge de Cyrce o grego Ulysses, Assim foge de Dido o pio Enéas. Porém, primeiro, subtilmente a inílamma; Se acaso ardente, devorante fogo Torrar os bofes, consumir entranhas. Natura acode com forçoso impulso, E mais depressa se afugenta o pejo : Mais depressa o calor do sol derrete Pallida massa de esfregada cera ; Mais cedo rompe ariete forçoso Torres antigas, ruinosos muros.

IV

Se branco rosto, que formoso esmaltam Preciosos rubis, azues saphiras, Face morena, que engraçados ornam Dous prelos olhos, cora que as Graças brincam;

DE AMAR 51

Se airoso gesto, movimento lindo, Se honesto modo, se sisudo termo Feriu teus olhos no theatro, ou templo, Eia, mancebo, tens amores, corre!... Em ligeiro te sublima, e ergue; Da vasta chusma simulado escapa. Ou destro flnjas cérebro revolto, Ou falso mostres abafado o peito ; Logo modesto dirigindo os olhos Á branda Tyrse, para os seus repara; se innocentes ao acaso vagam. Ou se inquietos com destino giram ; Se por ventura teu rival encontras. Animo forte, desmaiar não deves ; Mais honrosa será tua victoria, Tens para o carro triumphal captivo.

Era consorte de vulcano Vénus, Mas dos favores seus é digno Marte : Com vergonha do sórdido ferreiro Preso nas redes fica o deus da guerra ; Quaes no prado mellifluas abelhas Correm voando d'uma flor em outra, Nem sobre o casto rosmaninho pousam, Nem sobre o thymo matinal descançam : Taes, oh mancebos, mulheris desejos Correndo voam de um amor em outro. Nem destro Ulysses seu correr impede,

52 ARTE

Nem rico Midas suas azas prende; Oh tu cerúlea, cristallina Thelis, Quando revolta não serás tão vaga ? Oh tu soberbo, furioso Noto, Quando liberto não serás tão doudo? São mais constantes de um carvalho altivo As livres folhas, quando Bóreas sopra, Ti'emulam menos nos extensos mares Flâmulas soltas, que manea o vento. Se tu mancebo, por acaso agradas. Vive seguro, em teu rival não cuides; É velho amante, tu amante novo: Pode mais do que amor. a novidade; De novo ardia por Helena Paris, Por isso foi de Meneláo contrario.

VI

]\Ias é preciso que subtil e ardido Primeiro excites a attenyão de Tyrse. Com gesto alegre teu amor exprime, Fallem teus olhos, todo o corpo falle; I\Iudo lhe dize que te assombra, e pasmam Do seu semblante a formosura, e a graça. Ora de espanto se amorteça a face. Ora se accenda com venéreo fogo: O mesmo elTeito teus contrários fazem, Todos o orgulho mulheril incensam: O forte sexo para si reserva De Phebo os louros, de Mavorte as palmas.

DE AMAR 53

Em carros triuniphaes nunca viu Roma Matrona illustre de Cesárea casa : Sós d'entre a chusma mulheril as Musas A sombra dormem de Apollineos louros ; Ao sexo lindo agradam myrthos, Verdes arbustos, que cultiva Vénus. d'entre a chusma varonil Cupido Da Cypria deusa pode entrar no templo : A porta guardam Fúrias irritadas, Que em vez de lanças arrepellam serpes. Com dente venenoso rasgam, mordem Alheio sexo, que arrostal-as ousa. Posto que fosse lindo o amor de Vénus, Morreu da sua mordedura Adónis; Provando a fúria da raivosa Alecto, Foi convertido em tenra flor Narciso.

VII

Mas onde corre meu batel ligeiro ! Ferrando a vella para traz voltemos. Mancebos, que me ouvis, sabei somente Que n'este laço se surprehendem todas. Se acaso entrasse n'esta rede de ouro Lucrécia mesma ficaria presa; Não seria Penélope tão casta, Se os seus amantes lhe chamassem bella.. Esta gloria somente querem todas, Com fervoroso ardor todas a buscam ; Nem sobre as margens do Euphrates César

ARTE

Mais pela gloria marcial suspira. Apraz a Vénus variar de forma, Também Cupido de ser vario gosta ; Um gesto sempre doce se aborrece, Ás vezes vale muito um desagrado.

VIII

De teu rival, mancebo, nota o modo, E tu sempre diverso modo segue : Kão basta ter somente amante novo, É também necessária nova forma. Se elle inquieto namora, tu sisudo, Se indecente se mostra, tu modesto ; Se triste se apresenta, tu alegre; Se acanhado se mostra, tu mais livre, Mas toma sempre virtuoso gesto. lhe pareça teu amor fraqueza. Não ha no inundo tão lascivo monstro Que a virtude não preze mais que o vicio: E julga sempre a feminina turba D'elles alheio quem se mostra casto: A llamma do Giurae também queima. E torna brandas mulheris entranhas ; xsem víbora raivosa, que pisada Do vago caminhante se exaspera. Nem besta furiosa, em cujas fauces O nu selvagem ci'ava a setta aguda, Mais iradas se accendem, do que a turba, Quando ciosa se exaspera, e arde.

DE AMAR

O ciúme foi ferro, a cujo golpe

Banhou seu sangue, oh forte Pyrrho, as aras,

Foi elle a chamma, que abrazou Semeie :

Em feroz urso transformou Calixto ;

{Eu mesmo, eu mesmo. . . Mas a dòr me impe le,

Tu, soberbo rapaz da Idalia, o dize !

Ah ! formosa Corinna ! Não te engano,

me abrazo por ti, por ti morro!. ..)

Porém sulquemos novos mares, fuja

Nosso veloz batel longe da praia.

IX

Mancebo, deixa o teu rival ; cuida Em combater da bella Tyrse o peito. Do theatro se corre o largo panno, Aberta a scena principia o drama. Temerário, não deves vêr tranquillo Da peça theatral o sábio jogo: É Cupido rapaz, não tem socego, Não perde a occasião o que amor busca; Para os olhos de Tyrse te encaminha, N'elles a scena figurada nota; Se por acaso lagrimas derrama Tu de pranto também as faces banha: Finge ao menos seccar com alvo lengo O terno pranto, que verter não podes ; Se irritada parece, toma fogo, Se com assombro pasma, tu te assombra.

5[> ARTE

Mas que novo segredo Amor me inspira! Que sabias regras, que preceitos novos ! Fillio de Vénus, e de Marte filho, De teus altos mysterios serei vate ! Forma novos oráculos em Gypro ; Por elles tenha esquecimento Delphos. Namorado mancebo, Amor te falia, Ouve com filial respeito as vozes. Posto que tu na scena Doris ouças, Altos prodígios, maravilhas novas, A voz soltando bella, e sonorosa Com que suspenda sybillantes ventos, Não pasmes, nunca chores, ser não queiras Réo desditoso de tão negro crime ; Cheia Tyrse de inveja, não perdoa, Mais depressa seria o mar estável. A nação feminil sustenta sempre Entre si crua sanguinosa guerra; Inda no berço brandamente dorme, Inda c'o leite maternal se nutre, da cova sombria o negro monstro Que come verdes enroscadas serpes. Salta com venenosa lingua, e lambe Seu terno peito, seu formoso rosto; Na bocca lhe vomita cru veneno, Que para o brando coração lhe corre, E nas veias subtis introduzido,

DE AMAR 57

Co rubro sangue lhe circula, e pulsa ;

Não famílias com famílias rompem

A paz benigna, que na terra expira;

Entre as mesmas irmans se accende a guerra,

Por isso é lioje negro seixo Aglaura.

Até nos céus o vago monstro gira,

Minerva, e Juno fez rivaes de Vénus;

Não cairam troyanos altos muros,

porque Paris foi roubar Helena!

Mil adúlteros tinham sem castigo

Furtado esposas, maculado leitos;

No pomo da Discórdia veio envolta

A faísca fatal, que abrazou Troya.

XI

Comtudo, posto que raivosas todas Entre si mutuamente se enfureçam. Mancebo, não presumas que sem pena Vejam de amor qualquer irman queixosa. Não houve nympha nos Thessalios campos Que não movessem tristes queixas d'Eccho; Lyriope com dôr Narciso, Em branca flor Narciso as nymphas gostam : Quando o monstro voraz, que sae dos mares contra o filho de Thesêo famoso. Quando os frisões medrosos se perturbam, Ligeiros se embaraçam, quebram rédeas, Hypolito gentil por terra lançam, Raivosos seu formoso corpo pizam ;

58 ARTE

A crua turba mulheril de Athenas Festivos gritos para o ceu levanta, As tranças orna de jasmins e rosas, Vai dar a Vénus no seu templo as graças.

XII

Oh vós, monstros cruéis, geração dura! Malignas Fúrias com formoso aspecto ! Sacerdote de Amor, agora o digo. Hoje se saiba como sois geradas. Supremo Jove, que tirou do chãos A bruta massa, de que o mundo é feito, Quando os homens formou, disse-lhes logo: « De nova espécie produzi se;nentes; « Exista um novo sexo, em cujo seio « O nativo calor as desenvolva : «Formoso, que a prazeres vos excite, «t^Ialigno, que a um cego amor vos leve; «Os memb;-os todos de seu corpo forme «Formosa Vénus em Gythera, ou Cypro, «As Fúrias fique reservado o peito.» Mancebos!... Eis aqui por quem Cupido Em subtis rodes vos enleia todos: Mas não vos tinja rubro pejo as faces; Até por ellas foi novilho Jove. Se é tecido seu peito nos infernos E formailo no céo sua cintura: Ilypolito, Narciso lições sejam. Com elles aprendei a não ser duros.

DE AMAR 59

Posto que incestuosa chamma queime, Devore o falso coração de Phedra, Mostrai por ella que sentis ternura : Acompanhe seu pranto o pranto vosso. Tão felices agouros vendo Tyrse, De vosso peito cego amor espera.

XIII

Longo tempo Tritão ardeu nos mares Por Tiiysbe de Nereo cerúlea filha ; Dos seus amores rindo a esquiva nympha jMelhor ouvia o murmurar das ondas : Bem como de voraz golfinho foge Turba medrosa de miúdos peixes, Do mancebo Tritão cruel fugia Assim nos reinos de Neptuno Thysbe. Eis que um dia Protheo, pastor que guarda Das aguas o marítimo rebanho, Cuja molhada fronte cingem molles E verdenegros juncos, que o mar cria; Em tremulo penhasco, e ondeando enfeitam A leve coma palludosos ramos, Atraz do gado nadador cantava : ■«Ah! misero Tritão, se queres Thysbe, «Em leve mudada Troya vinga.» Os eternos oráculos não mentem, Deixou de ser esquiva a loura Thysbe. Quando Girce nas praias se queixava Do fugitivo, do perjuro Ulysses;

60 ARTE

Tritão da sua dòr enterneciJo

Vingança lhe prometle, chama os ventos,

Do sagrado Oceano agita as ondas,

No fundo seio as gregas naus soçobra,

Mais preciso não foi, Thysbe se rende,

Do louco amante para os braços corre.

Mil beijos lhe recebe, e mil lhe imprime. . .

Deveis, mancebos, presumir o resto;

Em breve tempo todo o mar povoam

Filhinhos de Tritão, de Xerôo netos.

XIV

Eis em resumo as regras necessárias, Afim de conseguir femineo aíTecto : D'ellas aprendereis, destros mancebos, A serdes cautos, prevenindo os laços Armados por Amor á inexperiência; Pendurando assim trophéos innumeros Ao carro triumphal da vossa gloria.

ff?

CARTAS DE OLINDA A ALZIRA

EPISTOLA I OLINDA A ALZIRA

Que extranha agitação não sinto n'alma Depois que te perdi, querida Alzira ! De meus ollios fugiu, sumiu-se o fogo, Que a tua companhia incendiava! Por uma vez se foi a minha alegria, Nem a mesma sou, que outr'ora hei sido í Minhas vistas ao ceu languidas se erguem, E a mim própria pergunto d'onde venha Tão novo sentimento assoberbar-me? Não se aquieta o coração no peito, Não cabe n'elle, e viva chamma no intimo Das entranhas ardente me devora, Sem que eu possa atinar a causa, a origem. Aquelles passatempos, que na infância Tão do peito queria, em ódio os tenho.

ALZilt\ A UI.IMjA

Das mesmas sup'noras a presença, Que d'antes para mim era indiffrente, Se me torna hoje dura, intolerável! Aonde, aonde irão estes impulsos Precipitar a malfadada Olinda? Será, querida Alzira, a tua ausência, Que me faz derramar tão agro pranto? Debalde a largos passos solitária Vago sem norte : ignoro o que procuro ; Ah ! minha cara ! os males que tolero Expressal-os não posso, nem soíTrel-os.

EPISTOLA II

ALZIRA A OLINDA

Conheço de teus males a vehemencia, Prezada Olinda ! Eu própria os hei soffrido. Quando da m.esma edade que hoje contas Próvida a Natureza começava A preencher em mim seus fins sagrados. Marcha ella por graus em suas obras; Procede ao fructo a flor matizada, Que fora antes de flor botão mimoso. Assim a sabia mão da Natureza, A passos insensíveis caminhando Maravilhas em nós produz, que assombram. Somos na infância apenas um bosquejo

OLINDA A ALZIRA iVÒ

Do que nos cumpre ser annos mais tarde.

N'aquella edade a Natureza attenta

Em conservar-nos só, não desenvolve

Sentimentos, que então supérfluos foram :

Inactivas nos tem, e nos conserva,

Bem como as plantas no gelado inverno.

Porém depois que o sol da primavera

Fecundos raios sobre nós dardeja,

Então de novas formas animado

Pula nus veias aíTogueado sangue,

E sem perder da infância os attractivos

Da puberdade o lustre desfructamos.

Então sentimos commoções insólitas,

Que origem são dos males, que te opprimem :

Do amor, que te domina, melancholieo ;

Da forte agitação, que em ti presentes.

Mas tem tudo remédio; eu hei-de dar-t'o,

Feliz serás, se o trilho me seguires.

EPISTOLA III OLINDA A ALZIRA

Quanto gratas me são as tuas letras, Querida Alzira ! Ao coração me falias ! As tuas expressões meigas occultam Em si virtude tal, que apenas lidas

64 OLINDA

D'ellas a alma se apossa sequiosa: Tu és, prezaila amiga, único archivo Aonde os meus segredos mais occultos Eu vou depositar: em li encontro O refrigério a males, que tolero, Sem poder conhecer a sua origem.

Se bem me lembro, outr'ora de ti mesma Ouvi eguaes queixumes, não sabendo Nem eu, nem tu, d'onde elles procediam. Uniu-te a sorte a Alcino, e venturosa Sempre te ouvi chamar desde esse tempo. Cessaram os teus males, eu os sinto. .. A edade é (dizes tu) a causa d'elles ; Ah! Que extranha linguagem! Não concebo Porque falias assim; pois traz a edade Males, nos tenros annos não provados? Três lustres conto apenas: tu três lustros Antes de te esposar também contavas ; Poz o consorcio a teus lamentos termo, Limitará os meus? Ah! dize, dize Tu, que desassocego egual soííreste, O seu motivo, e como o apaziguaste; Revela á tua amiga este mysterio D'onde sinto perder o meu repouso. Eu não exp'rimentava o que exp'rimento : Os meus sentidos todos alterados Uma viva emoção põe em desordem. Cala-me activo fogo nas entranhas : O coração no peito turbulento Pula, bate, com anciã extranhamente ;

A ALZIRA

O áangue, pelas veias abrazado Parece que me queima as carnes todas : A taes agitações languidez terna Succede, que a meus ollios pranto arranca, E o coração desassombrar parece Do pezo da voraz melancholia. mesmo a natureza tem mudado A configuração, que eu d'antes tinha: Vão-se augmentando os peitos, e tomando Uma redonda forma, como aquelles Que servem de nutrir-nos na infância. D 'outros signaes o corpo se matiza Antes desconhecidos : alvos membros, Lisos té'qui, macula um brando pello, Gomo o buço ao mancebo, á ave a penugem. Sobresalta-me d'homens a presença, EUes, a quem agora indiíTerente Tenho com aíTouteza sempre olhado ! Ao vêl-os o rubor me sobe ao rosto, A voz me treme, e articular não posso Sons, que emperrada a lingua não exprime. Sinto desejos, que expressar me custa; Amor. . . E como a idéa tal me arrojo ? Será talvez amor isto que eu sinto ? tenho lido eíTeitos de seus damnos ; Mas esses, que o seu jugo supportaram,, Tinham com quem seu pezo repartissem, Tinham a quem chamavam doce objecto. Quem a seu mal remédio suggerisse, IslO era amor; mas eu amor não sinto :

5

06 OLINDA A ALZIRA

A doce inclinação, que dous amantes Um ao outro consagram, desconheço. Sim : dos homens a vista lisonjeira É para mim ; nenhum porém me prende; Não sei se chamma interna me aíTogueia. . .

Amor isto será ? Alzira, falia. Falia com candidez á tua amiga ; Ensina-me a curar a funda chaga, Que internamente lavra por mim toda. D'estas agitações, que me flagellam, Mostra-me a causa, mostra-me o remédio : Tu tiveste-as também, não te avexam. Mostra-me por que modo as terminaste. Talvez do que te digo farás mofa , . . Ah ! que por meus lábios a innocencia Comtigo é quem se exprime ; tem d'ella, E se os meus sentimentos são culpáveis, Dize-m'o, que abafados em meu peito Serei victima d'elles ; se extinguil-os Os meus esforços todos não poderem, Comigo hão de morrer, findar comigo.

ALZIRí^ A OLINDA 07

EPISTOLA IV ALZIRA A OLINDA

Com que satisfação, com que alegria Vejo da minha Olinda as ternas letras ! Retrato da innocencia, me affiguras O que por mim passou, extranlio effeito De um coração sensível, não manchado Ainda pela mão da iniquidade. Falia, não temas exprimir-te, Olinda, Que se culpável fores de outrem aos olhos, Aos meus és innocente, e assim te julgo.

Da inviolável lei da Natureza A que sujeita estás, bem como tudo, Nascem, querida amiga, os teus transportes : provém d'ella, é ella que t'os causa ; Ella os mitigará em tempo breve, Dando-te próvida um remédio activo. A triste educação, que ambas tivemos. Mais desenvolve os ternos sentimentos Dos que amar procuram, e não podem Na solidão senão atormentar-se. Do recato das filhas temerosos Pensam os rudes pães, que em sopeal-as Alcançam extinguir o voraz fogo Que sopra a Natureza, e que ella atêa. Néscios, de amor lhe formam attentados. Que o coração desmente, e que não pôde Saber justificar a razão mesma.

C8 ALZIRA A OLINDA

Benignas emoções chamam flagícios,

Que infernaes penas castigar costumara :

Sem que atinem o modo por que devam

Tornal-as puras, e do crime alheias,

Porque do crime o amor não diíT'renceam,

Amor e crime o mesmo lhes figuram.

Ah ! que de um pae o emprego não tolera

Máximas impostoras, vis idéas

Que religião não soíTre, e que forcejam

Para c'oa religião auctorisal-as.

Saiba-se pois onde o culto, a honra

De um Deus se estende, e quaes limites devem

Marcar-se ás impressões da natureza :

Era vez de aferrolhar as tristes filhas,

Busquem mostrar-lhes da virtude a senda,

Do vicio a estrada com disvello attento.

Pois que impureza e amor um rumo seguem

Consiste o mal ou o bem na escolha d'este.

Sim, cara Oiiada : como tu, eu própria Falta da sociedade, porque n'ella Viam meus pães o escolho da innocencia, As mesmas emoções senti outr'ora ; Nos ternos annos teus então zombavas Do que nem mesmo decifrar podias. Quantas vezfes meu coração ás claras Te descobri, querida ; e quantas vezes O meu desassocego não provando, Rias dos sentimentos, que em minh'alma Entranhados estavam, sem que a causa D'clles jamais me fosse conhecida?

ALZIRA A OLINDA 69

Agora os exp'rimentas, crês agora

O que falso julgaras, verdadeiro !. . .

A Natureza em ti o gérmen lança,

Que a ajudal-a te incita: Amor te inflamma,

Porque sensivel és ; e bem que hesites

Sobre o objecto, que deve contentar-te,

Ella t'o mostrará em tempo breve.

Não te assustem do seu dominio as forças,

Porque do jugo seu o pezo é leve.

Não mais soffres férvidos desejos,

Que o coração te ancêam, e bem podem

A languidez eterna victimar-te,

Se de amor o remédio os não sacia.

Attenta sobre mil louçãos mancebos, Cheios de encantos : olha-os indulgente, E d'entre elles escolhe um, cujo peito Tão dócil como o teu seja formado. Olinda, ama; conhece que delicias Amor encerra, amor, alma de tudo ; Amor, que tudo alenta, e que causa Os gostos de uma vida abreviada. Se contra amor dictames escutaste, Que seus eíTeitos pintam horrorosos. Não dês credito a maxhnas fingidas, Que a lingua exprime, e o coração reprova: Que mal provém aos homens, de que unidos Dous amantes se jurem fé, constância? Que um ao outro se entreguem, e obedeçam Da Natureza ás impressões sagradas ? Rouba a virtude acaso a paixão doce

«70 ALZIRA A OLIXDA

Que beijos mil farta, e que pôde Nos braços de um amante saciar-se ? . . . ísão, amor a virtude fortifica: Mais a piedade sobre as desventuras Que os outros soíTrem, mais a humanidade Em nós se augmenta, quando mais amamos. Se desde o berço em nós força indizivel - Sentimentos de amor vai radicando ; Se, mal balbuciamos, quanto vômos A fallarmos de amor nos estimula; Se a edade vai crescendo, e a natureza Nossas feições altera, assignalando Com marcas bem sensíveis, que chegamos Ao prazo, em que é lei sua amar por força, Ou desnegar então nossa existência : Se tudo a amar convida, e nos impelle, Quem ousa amor chamar crime execrando?.

Ah! deixa, Olinda, deixa que alardôem Virtude austera hypocritas infames : Sabe que, em quanto amor horrível pintam, Em quanto aos olhos teus assim o afeiam, De uma amante venal nos torpes braços Vão esconder transportes, que os devoram, E, por castigo seu, somente gosam Emprestadas caricias, vis aíTagos. Mas quando assim os homens dissimulam, Para dissimulares te dão direito: Finge, como elles; ama e lh'o disfarça; Que é mais um gosto amar ás escondidas. AíTecta, embora, aíTecta sisudeza

ALZIRA A OLINDA 71

que aíTectar te obrigam, e em segredo De instantes enfadonhos te indemnisa; Zomba dos seus ardis, e estratagemas : Dize, entre os braços de um amante charo, Que mais crédulos são, do que te julgam, Se crêem nos laços seus aprisionar-te. Se os deleites de amor são delictos Quando sabidos são, com véo mui denso A perspicazes oliios os encobre : Vinga-te d'esses, que abafar procuram As doces emoções, que n'alma sentes.

São estes os conselhos de uma amiga Que os bens te anhela, que ella saborêa, Sabe, por fim, que quanto mais retardas Tão ditosos momentos, sem gozal-os ; Quanto mais tempo perdes ociosa Sem ás vozes de amor ser resignada, Tanto mais tempo tens de lastimar-te. Por não tèl-o em amar aproveitado.

EPISTOLA V

OLINDA A ALZIRA

é

Alzira, sou feliz ! . . . Quanto te devo ! . . . Das tuas instrucções é tal o fructo. Quanto encarava em torno era a meus olhos De lúgubres idéas feio quadro :

72 OLINDA A ALZIRA

Tudo O vejo agora alegres, vivas, '

Imagens prazenteiras, me suscita.

Os ternos sentimentos, que provava,

Mil vezes combinado com dictames

Que desde a infância sempre m'inspiraram :

Mil vezes reflectia que dos homens,

Ou de um tyranno Deus era ludibrio :

Conceber não podia que existisse

Para experimentar continua lucta

Entre impressões da própria natureza,

E princípios chamados da virtude.

No pélago de embates tão terríveis Fluctuando implorei o teu auxilio ; Meu coração te abri : e tu leste n'elle O que eu nem mesma deslindar sabia. Tu me ensinaste a vêr quanto fingidos Os homens são, nas vozes, e nos gestos : Rasgaste aos olhos meus mascara infame Com que teem de uso todos encobrir-se; Das bordas me salvaste de um abysmo, Onde a infeliz Olinda ia arrojar-se.

Perdoa, Deus immenso ! Eu blasphemava Contra a tua justiça; eu te suppunha Auctor do mal, que os homens machinavam: Cria-te inconsequente e despiedado, Pois sentimentos me imprimiras n'alma Que ás tuas leis contrarias me pintavam ! . . . Tu foste, Alzira, foste a que lançaste Um brilhante clarão ante os meus passos. . . Finalmente api'endi que a singeleza

OLINDA A ALZIHA

Do mundo era banida, e o seu império

Os homens tinham dado á hypocrisia,

Ruins ! . . . Amor por crime affiguraram,

E nem um de amor vivia isento ! . . .

Para elles não é crime um crime occulto,

Porque a simulação reina em sua ahiia,

Porque o remorso abafam era seu peito.

Amor um crime ! . . . Os gostos mais completos,

E os mais puros deleites o acompanham:

Se a ventura maior se une ao delicto,

Quem ha que se não diga delinquente?

D'entre as delicias que gosei, querida,

Com as tuas lições fugiu o crime.

Eu não senti no coração bradar-me

A voz d'esse pezar, sequaz da culpa:

No meio dos prazeres, que gostava,

Graças rendi a um Deus que m'os concede:

Se elle troveja sobre os criminosos,

Nunca os seus raios menos me assustaram!...

Um amante acabou o que encetaste : Elle cujo olhar meigo me assegura As doces qualidades, que o adornam, Afastou-me do espirito receios. Que de mau grado combatia ainda. Reinava em seus discursos a franqueza, E o fogo que brilhava nos seus olhos. Que o rosto lhe incendia, em seus transportes Que eram nascidos d'alma, me dizia: O labéo da impostura o não denigre ; Não é como o dos outros seu caracter ;

74 OLINDA A ALZIRA

Ingénuo, aíTavel, ah! prezada Alzira ! Se tão amável é o teu Alcino, Ninguém como eu e tu é tão ditoso ! . . .

Pouco preciso foi para vencer-me: Não teve que impugnar loucos capriclios, Goni que ufanas amantes difficultam O mutuo galardão, que amor exige: Se amor ambos infressa, e ambos colhemos Seus mimosos favores, porque causa Havia de indiíT'rença dar indícios. Quando o meu peito, ancioso, palpitava? Se eu o levava da ventura ao cume. Não me dava elle a mão para seguil-o? Sim; nos seus braços me arrojei sem custo E se o pudor as faces me tingia, Inda as chammas d'ainor mais me abrazavam. Eu nadava em desejos indisiveis; E quantos beijos recebia, tantos Cheios de igual fervor lhe compensava: Seus lábios inflammados ateavam As doces labaredas, em que ardia; E meus lábios, aos lábios seus unidos, Sensações recebiam deleitosas. Que me filtravam pelo corpo todo. . . Tão grandes emoções exp'rimentava, Que a tanto gosto eu mesma succumbia! Preza a voz na garganta, não sabendo Nem podendo articular palavra, Respirando anciada, e com vehemencia, Os meus sentidos todos confundidos,

OLINDA A AL/.IRA

Sem nada ouvir, nem vêr, apenas dando Signaes de vida, de prazer morria. Excepto o meu amante, em taes momentos Longe da idéa tinha o mundo inteiro: O mundo inteiro então forças não tinha Para do meu amante desprender-me. Debalde ante meus passos furibundo Monstro espantoso vira : em vão lançara Do aberto seio a terra ondas de fogo ; Em vão coriscos mil o céo vibrara; Dos braços do amante em taes momentos Nada, nada podia arrebatar-me. Oh quem poderá, Alzira, descrever-te Que extasi divinal veio pôr termo A taes instantes de suaves gostos! . . . Isto pôde sentir-se, e não dizer-se...

Agora, e agora me parece Que começo a existir: reproduziu-se Uma total mudança na minha alma. O mundo para mim tem encantos ; Sob outras cores vejo mil objectos, Que a phantasia me pintam tristonhos: Propicio Amor abriu-me os seus thesouros, A Natureza seus thesouros me abre : Tudo te devo, amiga; em todo o tempo A teus doces conselhos serei grata : Oxalá ditas tantas saboreies Quantas por ti, queiida, eu própria góso! Oxalá sintas com Alcino os gostos. Que exp'rimento, de um amante ao lado !

7(j ALZIRA A OLINDA

Nem ventura maior posso augurar-te, Porque maior ventura haver não pôde.

EPISTOLA YI

ALZIRA A OLINDA

A temerosa Olinda é quem me escreve? É este o seu pudor, sua innocencia ? Ah ! Que as minhas lições tão bem acceitas, Dão-me a vêr que a discípula inexperta Ha de em breve ensinar a própria mestra. Olinda não sabia o que excitava Dentro em seu coração ternos impulsos. Que tanto a angustiavam. . . Não sabia Qual d'extranha mudanças em suas formas. Em seus membros gentis a causa fosse ! A voluptuosa Olinda, devorada Do mais activo fogo, ingenuamente Consulta a sua amiga, e a um leve aceno Corre a engolphar-se na amorosa lida. Basta um momento a transtornal-a toda ! E porque de tão prospero successo Pretendes tu, querida, dar-me a gloria? Não, não fui eu : somente a natureza Sabe fazer tão súbitos prodígios : Como depressa ao mal, que te inquietava, Próvida suggeriu remédio activo !

* ALZIRA A OLINDA

Como de uma boçal, incauta virgem Uma amante formou tão extremosa !

A agradável pintura, que bosquejas, Dos férvidos transportes, que sentiste Entre os braços do amante afortunado, Não é, querida Olinda, tão sincera, Gomo sincera foi a que traçaste De ignotas emoções a Amor sujeitas. não te exprimes com egual candura : Filha da reflexão nova linguageai, Por artificio mascarada em letras, Vejo, que annunciar-me antes procura Após do que se ha feito o que se pensa, Do que por gradações d'acção o int'i"esse Pouco a pouco esmiuçar, dar-me a vèr todo.

Rasga o pudico véo, com que debalde Aos olhos de uma amiga esconder buscas Voluptuosas traças, que transluzem Nas tuas expressões ; quando innocente Menos recato n'ellas inculcavas, Eu lia com prazer dentro em tua alma Os sentimentos, que a affectavam todos. Tenho direito agora a exigir-te A ingénua confissão d'esses momentos Prelúdios do prazer, em que te engolphas. Quero saber porque impensados lances D' um amante nos braços te arrojaste ; Como o pudor fugiu, e o que sentiste Quando abrazada em férvidos desejos Misturados com dòr indefinível.

78 ALZinA A OLINDA

De amor colhestes attonita as primicias,

E provaste entre gostos e agonias

O que uma vez, não mais, pode provar-se;

Tens um amante; eu sou a tua amiga;

Elle te prazer, d'ella o confia :

Gasta os momentos, que gozar não podes,

Do goso em recordar puras delicias :

Nem todo o tempo a amor pode ser dado.

A mór ventura, que o mortal encontra,

Seja embora infeliz, ou desgraçado,

É lembrar-se que foi venturoso;

E o não desesperar de sel-o ainda,

Um termo aos males seus põe muitas vezes.

Alzira foi do teu prazer motora,

A gratidão te obriga a dar-lhe a paga.

E nobre o meu infresse, e não mesquinho ;

Pago-me d'escutar as tuas ditas,

E cedendo a meus rogos falso pejo.

Saiba eu teus momentos deleitosos.

Mas que o sacrifício, que te peço, Eu própria generosa abro primeiro : Primeiro eu quero timidos receios Calcar aos olhos teus;. entra em mim mesma. como reina Amor dentro em minh'alma! Como elle faz meus gostos todos ! Chamem embora apathicos estóicos Ardores serisuaes os que me inflammam: Ghamem-me torpe, chamem-me impudica; Taes vilipêndios valem o que eu góso : Venha a rançosa, theologia

ALZIRA A OLINDA 79

Crimes fingir, crear eternos fogos,

Eu desafio os seus sequazes todos,

Eu desafio o Deus, que elles trovejam!. ..

Nos mais puros deleites embebida,

Bem os posso arrostar, posso aterral-os!

Não estremeças, não, amada Olinda;

Longe do Fanatismo a turma odiosa,

Que infames leis, infames prejuisos,

Quaes cabeças fataes d'hydra indomável

Para o mundo assolar tem rebentado :

Não ha para os christãos um Deus difi^erente

Do que os gentios teem, e os musulmanos:

Dogmas de bonzos são condignos filhos

Da fraude vil, da estúpida ignorância,

Da oppressora politica productos.

O que Razão desnega, não existe :

Se existe um Deus, a Natureza o oíTerece :

Tudo o que é contra ella, é oíYendel-o.

A solida moral não necessita

De apoios vãos : seu throno assenta em bases

Que firmam a Razão, e a Natureza.

Outra vez eu farei que estes dictames Com seguros principies sustentados, Destruam tua crédula imperícia ; Abafando illusões, que desde a infância Te lançaram na mente inculta e frouxa, Que Fúrias tem, que tem Dragões e Larvas, Para os gostos da vida atassalhar-te. Para a remorsos vis dar existência. Por ora segue o culto, que te apontam

80 ALZIRA A OLINDA

As emoções da própria Natureza : religiosa e Qi-me em pratical-as.

O meu Alcino, a quem eu devo tudo, N'um momento desfez o que em três lustros Néscios pães procuraram suggerir-me. Por habito adoptei de uns a doutrina, Por gosto d'outro as máximas sem custo Dentro em meu terno peito radicaram. Tu sabes, minha Olinda, quão perplexa Minha alma balançava entre os combates: Que a rude educação, que recebera, Dentro em mim mesma oppunha sentimentos Cujo extranho poder toda me enleava.

Foi n'este estado de incerteza, e inércia, Que Alcino desposei: occulta força Me impellia a adoral-o: não sabendo De deleites que fonte inexhaurivel Se ia abrir para mim entre seus braços. Do dia nupcial todo o apparato Olhava como um sonho!. . . É impossível A estupidez, o pasmo em que me via Traçar aos olhos teus; lembra-me apenas A inquietação d' Alcino em todo o dia, E a avidez de prazer, em que enlevado, Terminado o festim, n'alta noute Ao throno nupcial foi conduzir-me. Ficamos sós: eu timida, agitada, Em sossobro cruel (qual branda pomba. Que ao tiro assustador vòa e revoa. Aqui, e alli mal pousa, se levanta

ALZIRA A OLINDA 81

Sem guarida encontrar, que ao p'rigo a salve)

Palpitava, tremia, e de meus olhos

€orria em fio inexpontaneo pranto.

Eu sentia no rosto, e em todo o corpo

Espalhar-se o rubor, que gera o sangue,

Pelo fogo, que toda me abrazava.

Não sei que meigos termos n'este tempo

Soltava Alcino; eu nada percebia;

Porém vi que a m'eus pés, banliado em gosto,

Chorando de prazer, supplices votos,

Ardentes expressões balbuciava:

Pelo meio do corpo com seus braços

■Cingindo-me ancioso, sobre o leito

Me foi em fim lançar. Quando eu ardia

Em chammas de pudor, o mesmo incêndio

Davam a Alcino soíTregos transportes :

Suas trementes mãos me despojavam

Dos nupciaes ornatos, e seus beijos

Convulsivos esforços, que lhe oppunha,

Pagavam com furor ; suas caricias

Amiudando aftbuto, e temerário.

Irosa quiz mostrar-me ; mas os fogos

Qne o pejo tinha accezo, então tomando

Mais activo calor, porém mais doce ;

Minhas repulsas, de ternura cheias,

A maiores arrojos o excitaram ;

Menos timido, quanto eu mais irada,

Meus olhos, minhas faces, e meu seio

Beijava Alcino: Eu languida fitando

]S'eile amorosas vistas, reclinei-me

82 ALZIRA A OLINDA

Sem resistir-Ihe mais, sobre o seu coUo :

Importunos vestidos, que estorvavam

Seus inflammados beiços de tocarem

Occullos attractivos. .. longe arroja.

Então aos olhos seus (tu bem o sabes,

Quando outr'ora passávamos unidas

Em innocentes brincos. . . feliz tempo!)

Meus peitos, cuja alvura terminavam

Preciosos rubis, patentes foram.

Ao voluptuoso tacto palpitante

Mais, e mais se arrijaram, de maneira

Que os lábios não podiam comprimil-os.

Meus braços nus, meu collo, eu to la estava

Coberta de signaes de ardentes beijos.

Os leves trajos, que ainda conservava.

Em vão eu quiz suster: rápido impulso

Guiava Alcino: d'Hercules as forças

Alli vencera. . . As minhas que fariam ?

Go'as forças o pudor desfallecido

Deixei fartar seus olhos, e seus gestos.

« Que lindos membros ! . . . Que divinaes formas ! . ,

(De quando em quando extático dizia)

« Ah ! que mimosos pés ! ... Oh céo ! ... que encantos ! .

Que graças apparecem espalhadas!

Que thesouros de amor sobre estas bases ! . . .

Oh que prazer! que vistas deleitosas !. . .

Alzira, eu vejo em ti uma deidade !

Deixa imprimir meus ósculos aonde

Entre fios subtis se esconde o nácar ! . . .

Deixa esgotar a fonte das delicias ! . . .

ALZIRA A OLINDA 83

Ah ! deixa-me expirar aqui de gosto ! . . . Não mais rubor, Alzira, não mais pejo!,..»

Eram brazas, que as carnes me queimavam, Seus dedos, os seus beiços, sua lingua! Sim; sua lingua, bem como um corisco, Abriu rápida entrada, onde engolphadas Todas as sensações luctavam junctas: Pela primeira vez dentro em mim mesma Senti gerar-se suIMta mudança, Com que de envolta mil deleites vinham. Gommunicou-me sua raiva Alcino, E na lasciva acção, que proseguia, Tal infresse me fez tomar, que eu própria A seus intentos me prestei de todo. Entre incessantes gostos doces gotas Brotavam solire os toques impudicos : Mas quando, ao crebo impulso, extasiada Cheguei ao cume do prazer celeste, Ardente emanação de Íntimos membros, Que electrisavam fogos insoffriveis. Inundou o instrumento das delicias. Como se ao crime seu vibrassem pena.

Ou antes dessem premio : aíYadigado

Na maior languidez, quasi em delíquio,

Alcino veio ao meu unir seu rosto. N'este instante, eu não sei que desejava;

Sei que o primeiro ensaio dos prazeres

Em vez de suíTocar activas chammas,

Scentelhas transformou em labaredas,

Infundiu-lhes vigor inextinguível.

ALZIRA A OLINDA

A ardência dos desejos combatia Receio occullo, sem nascer do pejo.

N'um volver d'oIlios se despiu Alcino, E deu-me a vêrquam bem talhado D'hoinbros, e lados com feições formosas Seu corpo era gentil: váliiJos membros Cobria fina pelle; era robusto, E delicado a um tempo; esbelto, airoso, Medíocre estatura, olhos rasgados. Mimosas faces, rubicundos beiços, Cheio de carnes, sem que fosse obeso. Igual nas proporções... Eis um mancebo Digno de a Marte, e a Adónis antepòr-se. Não tendo de um a rude valentia. Nem tendo d'outro a feminil brandura. Então lancei curiosa ávidas vistas Sobre ignotas feições : fiquei pasmada Ao vèr do sexo as distinctivas formas Dobrando a extensão: dobrou meu susto, Mormente quando, desviando Alcino Meus pés unidos, entre meus joelhos Seus joelhos encravou, e com seus dedos Procurou dividir da estreita fenda Pequenos fechos, sol)i'e as quaes, de chofre, Asseslou o canhão, que me assustava. Ao medo succedeu uma dòr viva, €omo se agudo ferro me cravassem. . . Alcino impetuoso ia rompendo A ténue fenda... Em vão, com mil gemidos Em pranto debulliada, cu lhe pedia

ALZIRA. A OLINDA 85

Que não contiauasse a atormentar-me :

O cruel, minhas lagrimas bebendo,

Respirando com anciã, e furibundo,

Com a bocca colada sobre a minha,

Meus gritos abafando, me rasgava:

Mais internos pruridos flagellavam

Intactos membros, mais ardor vehemente

Abrange a todos do que os outros soíYrem.

Copioso suor ardente, e frio

O cançasso d'Alcino, a afflicção minha,

Inculcavam assas, que eram baldados

Seus esforços cruéis para romper-me:

Tão árdua intromissão debalde havia

A custo do meu sangue repetido.

Se enorme corpo diminuta porta

Deve transpor, carece de abaler-lhe

Antes d'entrar, humbraes a que se encosta.

A violenta fricção traiu Alcino,

E o membro, que tentava traspassar-me.

Da própria sanha aos Ímpetos rendido,

Succumbiu, espumando horrendamente.

Da eléctrica matéria nas entranhas

Caíram-me faiscas derretidas;

Um vulcão se ateou dentro em mim toda,

O insoffrivel ardor, que me infundiu

Liquido tiro, ao centro chegado

Por onde apenas o expugnado forte

Da inimiga irrupção indefensável,

Podia receber patente damno,

Taes estragos causou, que mais valera

86 ALZIRA A OLINDA

A entrada franquear ao sitiante. dòr não conhecia: chammejava Meu próprio sangue, com violência tanta Que lacerar-me as veias parecia.

Na estancia do prazer lançara Alcino Do Mont gibello as lavas, e extinguil-as torrentes mais fortes poderiam. Improviso calor calou-me o peito : Quizera eu expôr-me aos vivos golpes; Quizera no meio da carnagem A batalha suster, ganhar a morte, Ou a victoria, de triumphos cheia. Tardava a meus desejos vèr completa I)'Alcino a empreza; eu mesma o provocara, Se, em fim, refeito da ufanosa esgrima O não visse ameaçar um novo assalto. A um resto de temor maldisse aíTouta, E comigo jurei de não dar mostras De leve dòr, bem que me espedaçasse.

Alcino sotopõe uma almofada Para o alvo nivelar, e separando Quanto mais pòie nitidas columnas, O edifício tentou pôr em ruina. Ao forte insano impulso eu respondendo, (Ah! que o valor cedeu no transe afflicto!) O muro se escallou ! . . . Foi tal a força Da agonia cruel, que esmorecendo Semiviva fiquei: em quanto Alcino Dobrando, e redobrando acerbos golpes, Do reducto de amor o intimo accesso

ALZIRA A OLINDA <S7

Penetra entre meus ais, e os meus gemidos. Outra vez attingiu supremo goso, Goso celestial, cujos effluvios Um bálsamo espargiram deleitavel, Qne socegou a dor, chamando a vida, Lethargicos alentos me abysmaram K'um pélago de gostos indizíveis; Elevaram-me a um céo d'immensas glorias: Encadeei AJcino com meus braços, Enlacei-o com os pés entre as espaldas; Férvidos beijos dando, e recebendo Com phrenetico ardor, com anciã intensa, Chamando-lhe meu bem, minha alma e vida; Vozes, suspiros confundindo... tanto, Tanlo emfim apressei dos hirtos membros Forçosa agitação, que n'um momento Ineffaveis delicias distillando Alcino em mim, e eu n'elle ao mesmo tempo. Libámos juntos quanto prazer podem Os mesmos homens figurar deidades. . .

Minha Olinda, que instantes ! ... Eu não posso Traçar-te a confusão de emoções novas ■Que no extasi final me transportaram!... Amarga, acerba dor succumbe ao goso Da ventura sem par. . .Vitaes alentos. Saborear não podem tantos gostos. . . É preciso morrer entre deleites, E fora melhor não tornar á vida, «Que conserval-a sem morrer mil vezes.

Sete vezes Amor chamando ás armas

88 ALZIRA A OLINDA

Seus súbditos fieis, travou peleja; Sete vezes Amor bradou «Victoria!» Da indefensa coragem conduzido Morpheu veio c'roar nossas proezas. Eis de que modo a tua Alzira soube D'Amor com as lições sublime vòo Erguer aíTouta sobre o néscio vulgo ! Este odeia o prazer por modéstia, E as pudicas vestaes, escravas do erro, Não cessam d'embair-nos, aíTectando D'uma virtude mimicas formas, Que o que se anhela mais a encobrir forçam; Forçam em vão, que a Natureza brada, E ao grito seu, queira ou não queira o mundo, Curvo depõe ficções, da insânia filhas, Tirando abrolhos, que da vida lança Na aprazivel estrada impostor bando. Assim ornei a fronte radiosa De vicejante rama, que decora Victorias, que do erro heroes alcançam. Toma das minhas mãos amada Olinda, Proveitosa lição ; tu começas Triumphos a ganhar cheios de gloria : Dócil tua alma a Ímprobos dictames, Dócil será também de mais bom grado. Ás piedosas leis da Natureza: Retrocede, como eu, da inextricável Sinuosa vereda, onde perdidas Palpamos trevas, tacteando abysmos ; Desapprende a fingir ; quadra ao vicio

ALZIRA A OLINDA 89'

Acoberta-se com mendaces roupas.

A modéstia o pudor gera a ignorância,

Ou do mal- feito um sentimento interno;

O mais é cobardia, ignavia rude,

Que n'uma alma vil pode arraigar-se.

Gabe, a quem soube respirar, vencendo

Da impostura as traições, um ar mais puro;

Olhar d'em torno a si, \er quão distante

Pulverulenta jaz infame turba:

Cabe ostentar o garbo, e a louçanii

Que espanta o vulgo, impondo-lhe o respeito

De que a nobre altivez se faz condigna.

Deixa-lhe os modos, toma o que te cumpre,

Sincera Olinda, tua amiga imita

Eu não coro de dar-me toda a Alcino,

Nem eu coro também de confessal-o :

Instinctos naturaes se não são crimes,

Como crime será narrar seus gosos?. . .

Se é innocente a acção, a voz não pecca;

D'est'arte saboreia o que estudaste,

E d'est'arte fallar, ah! não vacilles! . . .

Não te escuse o pensar que egual pintura Objecto egual exige, minha Olinda. Não ; nos gostos de amor sempre ha mudança. Amor sempre varia os seus deleites, Eu mostrei-te o modelo; em mim o encontras: Usa da singeleza que te é própria E abre o teu coração, cheio de goso, Qual, antes de o provar, ingénua abiiste. Se expor da sorte infensa a crueldade

UO OLINDA A ALZIRA

lenitivo ao mal, que ss exp'riiiienta, Sobre-eleva o prazer á extrema dita, Quando de o confiar redunda interesse. Eia, querida! annue aos meus desejos, Rouba um instante a amor, dá-o á amizade.

EPISTOLA Vli

OLINDA A ALZIRA

Tu não podes saber, querida Alzira, Com que alegria as cobiçadas letras Da tua Olinda foram recebidas ! Não podes saber, nem eu dizer-t'o. Que pura lucução, que Amor ensina! Qaam diíT'rente linguagem da que faliam Os livros, que me o meu Bellino I N'elles descubro o sensual estylo Que a modéstia revolta, e que não quadra As puras sensações, que Amor excita. Phrase brutal, sem arte e sem melindre, Qual despejada plebe usar costuma; >s"elles de amor os gostos enxovalha Mysterioso véo, que arrancar ousam €oni mão profana d'ante o sanctuario Que amor encerra, e d'onde o deus occulto, Manda aos mortaes um cento de venturas. D'elles o numen foge, e por castigo

OLINDA A ALZIRA 91

Leva após si deleites, que não provam: Em vez de graças mil, de mil prazeres Priapeo tropel ímpios incensam. Dá-me tédio a lição de escript s torpes, Onde o prazer fugaz, lassos os membros, Sob mil formas em vão se perpetua Lassos membros, lassos os sentidos, Debalde esgotam, soíTregos de gostos, De impudicicia innumeraveis gestos. Morre a chamma, que amor mutuo não sopra ; Gomo é vil a expressão, e é vil o goso Que uma Theresa, que outras taes francezas Em impuros bordeis gabar-se ufanam !

Foi-me preciso, Alzira, usar do império ■Que a um fraco sexo deleitosos modos, Fagueiros, ternos, emprestar costumam, Para do amante meu obter a custo De obscenas produc:úes o sacrifício. Que o coração corrompem, e devassam Puros desejos, sentimentos doces. Mostrei-lhe que o prazer esmorecia De amável illusão sem os prelúdios ; E que, apesar dos seus vivos protestos, "Se os sentidos assaz lisonjeava, Mil emoções gostosas embotando, Impellido a gosar continuamente, Escravo do prazer na sua amante Não fartaria hydropicos desejos: Ardentes Messalinas buscaria. Entre os braços das quaes mais fácil era

92 OLINDA A ALZIRA

Á vida termo pòr, que saciar-se.

Cedeu ás minhas supplicas, e agora Grato me diz que se elle da ventura O caminho me abriu, eu n'elle o guio: Assim, quando os sentidos fatigados De amor se negam esgotar delicias, Maná do coração inexhaurivel Prolifica virtude, que os alenta. Assim de gostos perennaes correntes Franqueia amor a quem o não profana: De Amor os gosos são como o diamante; Que, sem o engaste que locar-lhe veda Perdera a polidez, perdera o brilho. Ame o lascivo o mau, o torpe o obsceno ; Eu em tuas expressões aprendo, Alzira, Gomo a ternura impera nos sentidos: E d'um, e d'outro regulando as forças. De amorosos tropheos requinta a gloria.

O sensual atola-se nos vicios, Gujo infesto vapor todo o corria De lançar-lhe no tumulo o esqueleto ; D'outra arte aquelie, que libar suavisa Néctar; que Amor esparge aos seus validos,. Das rugas e das cans não teme o estrago ; Que nos últimos annos pode ainda Em seu transporte Amor beijar na face. Mas que exiges de mim ? Pensas, Alzira Que a rude Olinda como tu descreva A emanação dos gostos, que se provam Quando o primeiro amor os desenvolve

OLIXDA A ALZIIÍA V»3

Da terna virgem do innocente peito? Reclamas a candura, de que usava Antes de me illustrar de Amor o facho? Ousas mesmo increpar-me de artificio, Porque eu não soube delicada teia Urdir aos olhos teus, porque eu não soube As eíTusões de amor envolver n'ella, E, qual me envias, dar-te digna ofTerta? Basta, tu mandas; vou obedecer-te. Tenho ante os olhos instrucições sobejas Para pintar o quadro dos deleites Que de dois entes n"um absortos brotam. Tu me dás os pincéis, o molde, as cores, E no meu coração, prezada amiga, Fecunda o goso meigos sentimentos, Que acabarão, se amor acaba!...

Que chimericos céos fórma a impostura!. . . Aonde mores delicias se promeltem Que as de um amante, d'ouLro ao lado unido? Eu sonhava illusões, antes que fosse Nos mysterios de amor iniciada. Errava de um em outro labyrintho, D'onde os conselhos teus, amada Alzira, E amor, dando-me o fio d'Ariadna Me fizeram sair: deixam-me fOi^ças Para abafar o monstro, que meus dias Tinha de funestar com vãos temores, Flhos do erro vil, da fraude abortos.

Qual vaguéa nas trevas sem acordo Perdido o tino, afnicto o caminhante,

94 OLINDA A ALZIRA

D'alta serra entre as faldas pedregosas, Ou de Ínvia selva na espessura vasta ; Aqui tropeça, alli se encontra, e bate, Macera as mãos, o rosto, e tenteando Um lhe escapa, cáe, rola-se o triste, E n'um barathro crè despedaçar-se; Eis improvisa luz assoma ao longe; Attenta o infeliz, toma-a por norte, E dos pVigos, que o cercam, se salvo: Taes tuas letras para mim brilharam Na escuridão fatal, que me envolvia.

Não espaçou Amor ditoso praso Para no grémio seu a tua Olinda Bemfasejo acolher. Vira eu Bellino Passar uma, e mil vezes, attentando Com interesse em mim, attentei n'elle, Em seu terno olhar, e meigos gestos ; Vi que um amante o céo me destinava : Em breve os olhos meus lhe responderam Ás mudas expressões, que os seus diziam; Em breve as suas cartas, de amor cheias, Fizeram dar egual calor ás minhas, Accendendo os meus férvidos transportes.

N'uma cerrada noute, quando ao somno Estava tudo entregue, Amor velando No meu peito, e no seu, a vez primeira Nos ajuntou em fim: elle exultava De indizível prazer: eu me sentia Na agitação maior de gosto, e susto. Ao dar-lhe a mão, para o guiar de manso

OLINDA A ALZIRA 95

ao aposento meu, súbito fogo

Calou-me as veias, penetrou-me toda.

Mas quando, fechados um com oulro.

Vi que seus gestos, mais que suas vozes.

Sua ternura ousada me exprimiam,

Lembrou-me o p'rigo, a que me havia exposto ;

Tarda lembrança, que cedia a embates

De ignoto medo, que o rubor gerava!

Queria eu impedir-lhe ardentes beijos.

Mas vedavam-no as chammas, que accendiam

E ás primeiras caricias insensivel,

Luctando entre o pudor, e entre o desejo,

Em mil contrarias reflexões absorta,

Meu silencio e inacção a emprezas novas

De maior valor, Bellino excitaram :

Confesso, que deveras quiz oppòr-me

A seus intentos no primeiro instante;

Porém pouco tardou que abrazeada

Em chammas voluptuosas, resistindo

A seus esforços, mais lhe franqueava

Facil accesso a próximos triumphos.

Sentado junto a mim, lançando um braço Em redor do meu collo, até cingir-me, E obrigar-me a chegar ao seu meu rosto ; Com a mão sobre os peitos inquieta. Que ao crebro palpitar os apressava ; E os lábios discorrendo os olhos, faces, fixal-os nos meus, ou por entre elles Confundindo os alentos, lançar chammas Dentro em men coração, qual facho accezo ;

^6 , OLINDA A ALZIRA

A ardente lingua sua unindo á minha,

Ou, sobre o seio meu calando a bocca,

N'elle impressos deixar seus próprios beiços.

Com mão mais temerária, do vestido

Pela abertura a occultos attractivos

Indo o fogo atear. . . Ah! que eu não pude

jMais resistência oppôr a seus desejos!

Apenas leve fisga separando

Um dedo seu, que um raio parecia,

Tocou o sitio onde os deleites moram.

Súbito, alvorotados uns com outros

Travando estranha lucta, me levaram

Onde, fora de mim, quasi sem^vida,

quanto então gosei, gosar podia.

Dos membros todos foram engolphar-se

As sensações alli ; e tornaram

A ser o que eram, quando ao mesmo tempo

Sua potencia intinnseca exhalando.

Fiquei de toJo languida, e abatida :

O perverso Bellino attentos olhos

jSos meus então fitando, quiz lèr n'elles

De que ficções minha alma se occupava.

Foi extremo o rubor, que de improviso

Minhas faces tingiu : lancei-lhe os l.traços,

Escondendo meu rosto no seu peito.

Por não poder susler-lhe as doces vistas,

A minha terna acção atraiçoou-me ;

Que o maligno, pegando-me do rosto

Com amljas suas mãos, mais me encarava;

De confusa me vêr folga e se ufana,

OLINDA A ALZIRA 97

€om beijos mil parece devorar-me ;

Entre os seus braços mais e mais me aperta,

E pouco a pouco sobre mim se inclina ;

Minha 'cabeça no sophá encosta,

Meus pendentes pés trava, e os submette

Entre os seus mesmos que, em fim, de todo

^enti do corpo seu o pezo grato :

Meu leito era defronte : mas Bellino No largo canapé circ'lo bastante Hábil athleta achou para o combate. Perplexa em mil aíTectos engolphada, Irada, enternecida, em cruel lucta, Meus sentimentos todos labutavam: Um timido pudor activos fogos Contrariava em vão, em vão retinha, Ignotos medos, sofTregos desejos: Suspensa, e curiosa eu esperava 'Gostosa scena, em que prolixas noutes Pensando o que seria, desprendera.

Em quanto d'esta sorte embellezado Me tinham taes idéas, Bellino No phrenesi maior de grau, ou força, Os meus secretos votos preenchia. Em torno da cintura levantados Meus trajos inferiores, sobre os joelhos Sentindo os de Bellino desprendidos, Alargando-me os pés, tomando entre elles Vantajosa attituJe a seus projectos, Franqueando co'a mão fácil entrada A chammejante lança, que tocava -7

'J3 OLINDA A ALZIRA

O mesmo sitio, que invadira o dedo :

Forcejou para ferir-me com seus golpes,

Com ímpeto tamanho, com tal raiva

Que nem dos gritos meus se commovia.

Nem podia o meu pranto apiedal-o;

Co forte impulso as movediças carnes

Levava-me ás entranhas ; da ferida

Corria o sangue, mas sem que podesse

Ao ferro assolador achar bainha.

Seus dedos sanguinários finalmente

D'uma e outra parte com vigor sustendo

Flexíveis membros, redobrando as forças

De valente impulsão, a cruel lança

Rompeu cruento ingresso. . . traspassou-me.

Que dòr, Alzira!. . . Dei tão alto grito

Que Bellino depois disse o assustara,

Bem que fosse de meus pães distante o quarto.

Sem sentidos fiquei, emquanto o amante

Os tropheus da víctoria recolhia ;

E tornei a mim, quando ao meu sangue

Suave irrigação veio mesclar-se,

A agitações de gosto a dòr cedendo,

De gosto inexhaurível, que provara.

N'um momento apertada com Bellino,

N 'activa sensação toquei com elle

A meta das delicias, transportada

Da muito mais prazer que a dòr fora.

N'este instante convulsa e delirante,

E como se um espasmo supportasse,

Inteiriçada toda, os meus alentos

OLINDA A ALZIRA 99

Senti reconcentrar-se n'um ponto. Findava o meu amante, inda eu gosava (Gomprimindo-o comigo) aitas venturas, De que sedenta então não poderia Fartar-me assas : meus braços exhauridos, Meu collo, e pés, eu toda fatigada Do vehemente tremor, em que lidara, Caí prostrada, quasi semi-morta.

Quando a meus olhos (que caligens densas Tinham coberto) a luz tornou de novo, Volvi-os sobre o amante, de tal sorte Que ao vel-o supplice o instigava: Não ficava ocioso n'este tempo. Que no exame gastou do entrado forte. Pasmando dos estragos que fizera, E dos despojos que lucrava alegre. Da machina, que a praça expugnou firme, A estructura e altivez eu divisando, Custava-me a atinar como podéra Plantar-se o belisco no reducto estreito. Bellino minhas vistas comprehendendo, Fez-me sentir, forçando-me a tocal-o, Marmórea rigidez, còr escarlate, Forma e calor de obuz, que disparava. Quando submisso, da peleja lasso, O vi depois sem o estendido conto. Brancas roupas trajava, mais humilde: Mas agora, aíTrontando, arremeçando Monarcha ufano, a purpura do collo, Com furor ao combate se aprestava.

100 OLINDA A ALZIRA

Reverberou seu fogo em minhas faces, E a vèa e vêa d'ellas espalhado De todo o corpo me filtrou os membros. Da lascívia ao pudor jungindo o pezo, Fez-me Bellino levantar e tendo Elle sentado unidos os joelhos, Sobre elles me sentou, e franco accesso Da lança abrindo á ponta, a foi de manso No riste pondo, que a meio conto K'tílle embebida, sobre si de todo Levando o pezo meu, entrou de modo Que fiquei ás vísceras varada. A introduccão tão forte pouco aíTeitos jMeus delicados membros se avexarara : Mas curvando-me um pouco, e com justeza. Achei convir ao estojo o instrumento; Cuja palpitação, sem ajustar-nos, Em cadencia reciproca alliada. Bastava a provocar gosto indizível. De modo que sem mais fadiga eu pude, Ka grata posição Bellino immovel, Attingir o prazer mais saboroso, Kadar em mil deleites engolphada: Aqui, amada Alzira, essa virtude ■Que appellidam pudor, foi-me odiosa. De seus grilhões liberta, possuída De um venero foror, impaciente De comprimir a mim o caro amante, Arranquei-me da lúbrica attitude, Sobre elle me arrojei, toda anciosa

OLINDA A ALZIRA 101

De me identificar c'o meu Bellino :

Estreitada com elle, abandonada

De amor á raiva, que ambos incendia,

Sobre mim o arrastei junto do leito,

Onde ao meu peito o seu, aos seus meus lábios,

Do corpo os membros todos enlaçados

Misturando nos ósculos o alento.

Nos ósculos libando doce néctar,

Em tal agitação, que aos céos alçar-me,

E abater-me aos abysmos parecia ;

Ávida de absorver a grossa lança,

De soíTrer-lhe a rijeza diamantina,

E de arrostar-lhe os golpes incessantes,

Sentindo o instante em que violento impulso

De celeste eíTusão marcava o termo.

Nas mãos, e nos pés sós firmando o corpo,

Tanto me impertiguei, queo„meu amante

Sustive sobre miin, suspenso, em quanto

Aos finaes paroxismos succumbindo

Ao meu uniu seu ultimo gemido,

E dentro das entranhas abrazadas

Lançando-me torrentes d'almo influxo.

Submersa me deixou n'um mar de gosos.

Julgas, Alzira, que entre tanto gosto Na assidua compressão me não doiam As maceradas melindrosas carnes ? Ah ! que esta dôr pelo prazer vencida Irritava emoções deliciosas, Sobre-elevada ás sensações mais gratas. Qual sequioso cervo, repassado

-102 OLINDA A ALZIRA

Da calmosa avidez, suaves gotas Rábido anhela, e quanto é mais soíTrida Ardente sede, tanto mais ensopa Tma, e outra vez insaciáveis fauces: Não d'outra sorte flagellados membros Da dôr pungidos de cruéis combates, Balsâmica emoção consoladora Com avidez seccavam insoíTridos : A alluvião proliflca eu sentia, Pruridos divinaes e estremecendo A melliflua impressão, perennaes gosos Bastante tempo apoz gosava ainda. ís'este instante expirou dentro em minh'alma Temor nefando, que immolava ao culto. Kova moral raiou de Olinda aos olhos; Eu tive em pouco ríspidos preceitos, Ameaças cruéis, com que ralavam Meus annos infantis. Doeu-me, ^Vlzira, De ver tanta belleza definhada Da hypocrisia victimas infaustas; Aponta a edade, em que é d 'amor forçoso As delicias gosar; em que ai mo viçoso Como nas plantas, n'ellas assignalam : Grata reproducção comsigo abafam, Envenena-se o gérmen da natura. Infecção purulenta as vai minando. Que seus dias termina, ou os condemna A languida existência : abate o corpo, Abate o esp'rito corruido o alento. Innovamos a acção, eu, e Bellino,

OLINDA A ALZIRA 103

De eguaes em forças, sem perder coragem, Kenhum de nós cedeu, bem que durasse Algumas horas o combate accezo : Mas da noute feliz o longo manto Que os mysterios de amor commette ás trevas, Com róseos dedos a invejosa Aurora €ruel abrindo, fez dentro em meu peito A escuridão entrar, que em torno tinha, Foi-me odiosa a luz, que aíTugentava De mim com o amor perennes delicias. Uma e outra vez Amor tem facultado Ao constante Bellino, á terna Olinda Outros, como estes, prósperos momentos: São de tormento para mim os dias Que tel-o junto a mim debalde busco: Para elle o tempo que sem ver-me gasta, Figura-lhe de um século a distancia. Hymeneu houvera de enlaçar-nos, Se o mundo, Alzira, o mundo, que não cuida Senão em machinar sua ruina, De longo tempo não tivesse urdido Iniquas tramas, hórridas ciladas. Que ao homem (digno premio de sua obra) Barreiras põe na estrada da ventura. Retrocede o infeliz d'um a outro lado, Negras voragens ante os seus passos Tropel de Fúrias, que comsigo arrasta, Filhas do Erro, que animou insano, A Fortuna, que foi comigo larga, Negou seus dons a meu querido amante.

104 OLINDA A ALZIRA

Elle não conta nobres ascendentes,

De quem meus pães se dizem oriundos :

É quanto basta para erguer muralhas

De alcance, entre elle e mim, inaccessiveis :

O ditoso hymeneu não me é preciso,

O hymeneu, apparato de teus votos.

Para entre os braços seus tecer aíTuuta

Indissolúveis nós c'o meu Bellino:

Sou d'elle, é meu: os homens que se ralem.

Alzira, tu, que a amor meu peito abriste, Abre meus olhos á Natura inteira: Eu quero n'ella vêr os meus destinos; n'ella eu quero divinaes verdades Sollicita explorar, viver n'ella Cumpre as gratas promessas, que me fazes. Deva a ti a tua Olinda tudo. Não ha para os christãos um Deus diflerente Do que os gentios teem, e os musulmanos? O que a razão desnega, não existe : Se existe um Deus, a Natureza o oíT'rece; Tudo o que é contra ella, é oíTendel-o. Devo eu seguir o culto, que me apontam As impressões da própria Natureza? Tenho uma religião em pratical-as? Que o mundo é este pois, prezada Alzira? Teem os homens levado o seu arrojo forjarem um Deus na ousada mente. Traçar-lhe cultos, levantar-lhe templos, Attribuir-lhe leis, que a ferro e fogo Estranhos povos a adorar constrangem.

OLINDA A ALZIRA 105

Imniolando milhões á gloria sua? Nos lábios teem doçura, e probidade, No coração o fel, a raiva : os monstros São maus por condição, ou maus por erro? Não, eu não posso, Alzira, d'este enigma Romper o denso véo : minhas idéas Jazem n'um cahos de hórrida incerteza: Hesitar-me não deixes por mais tempo : Minha instrucção confio aos teus cuidados ; D'amizade o explendor dá-te a mim toda; Acaba de fazer-me de ti digna.

1^

SONETOS

Tendo o terrível Bonaparte á vista, Kovo Annibal, que esfalfa a voz da Fama, «Oh capados heróes! (aos seus exclama Purpúreo fanfarrão, papal sacristã) :

« O progresso estorvai da atroz conquista « Que da philosophia o mal derrama ! . , . » Disse, e em férvido tom saúda, e chama, Sanctos surdos varões por sacra lista :

D'elles em vão rogando um pio arrojo, Convulso o corpo, as faces amarellas. Cede triste victoria, que faz nojo!

O rápido francez vai-lhe ás canellas ; Dá, fere, mata; ficam-lhe em despojo Relíquias, bulias, merdas, bagatellas.

SONETOS ^07

II

quando em mim perder a humanidade jNíais um d'aquelles, que não fazem falta, Verbi-gratia o theologo, o peralta, Algum duque, ou marquez, ou conde, ou frade

Não quero funeral communidade, •Que engrole sub-venites em voz alta; Pingados gatarrões, gente de malta, Eu também vos dispenso a caridade :

Mas quando ferrugenta enchada idosa Sepulchro me cavar em ermo outeiro, Lavre-me este epitaphio mão piedosa:

«Aqui dorme Bocage, o putanheiro: Passou vida folgada, e milagrosa; «Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.»

108 SONETOS

III

Esse disforme, e rígido porraz Do semblante me faz perder a còr ; E assombrado d'e'spanto, e de terror Dar mais de cinco passos para traz :

A espada de membrudo Ferrabraz De certo não mettia mais horror : Esse membro é capaz até de pôr A amotinada Europa toda em paz :

Creio que nas fodaes recreações Não te hão de a rija machina soíYrer Os mais corridos, sórdidos cações :

De Vénus não desfructas o prazer : Que esse monstro, que alojas nos calções^ í, porra de mostrar, não de foder.

SONETOS 109

IV

N'um capote embrulhado, ao de Armia, Que tinha perto a mãe o chá fazendo, Na linda mão lhe fui (oh céos !) mettendo O meu caralho, que de amor fervia:

Entre o susto, entre o pejo a moça ardia; E eu solapado os beiços remordendo, Pela fisga da saia a mão crescendo A chamada sacana lhe fazia :

Entra a vir-se a menina. . . Ah ! que vergonha ! «Que tens? lhe diz a mãe sobresaltada : Não pode ella encobrir na mão langonha :

SuíTocada ficou, a mãe corada : Finda a partida, e mais do que medonha A noute começou da botetada.

i 10 SONETOS

Xo canto de um venal salão de dança, Ao som de uma rebeca desgrudada, Olhos era alvo, a porra arrebitada, Bocage, o folgazão, rostia o França :

Este, com mogigangas de creança, Com a mão pelos evos encrespada. Brandia sobre a roxa fronte alçada Do assanhado porraz, que quer lembrança:

Veterana se faz a mão bisonha ; Tanto a tempo menêa, e sáa o bicho. Que em Bocage o tezão vence a vergonha :

Quiz vir-se por luxuria, ou por capricho; M IS em vez de acudir-lhe alva langonha Rebenta-lhe do cu merdoso esguicho.

SONETOS

11!

VI

Não lamentes, oh Nise, o teu estado; Puta tem sido muita gente boa ; Putissimas fidalgas tem Lisboa, Milhões de vezes putas teem reinado :

Dido fui puta, e puta d'um soldado: Cleópatra por puta alcança a c'ròa ; Tu, Lucrécia, com toda a tua proa, O teu cono não passa por honrado :

Essa da Rússia imperatriz famosa, Que inda ha pouco morreu (diz a Gazeta) Entre mil porras expirou vaidosa :

Todas no mundo dão a sua greta : Não fiques pois, oh Nise, duvidosa Que isto de virgo e honra é tudo peta.

112 SONETOS

VII

Tu, oh demente velho descarado, Escândalo do sexo masculino. Que por alta justiça do Destino Tens o impotente membro decepado :

Tu, que em torpe furor incendiado SoíTres d'impia paixão ardor maligno, E a consorte gentil, de que és indigno, Entregas a infructifero castrado :

Tu, que tendo bebido o menstruo immundo, Esse amor indiscreto te não gasta D'impia mulher o orgulho furibundo:

Em castigo do vicio, que te arrasta, Sail)a a Ínclita Lysia, e todo o mundo CHie CS vil por génio, que és cabrão, e basta !

SONETOS 113

VIII

Vai cagar o mestiço e não vai ; 'Convida a algum, que esteja no Gará, E com as longas calças na mão Pede ao cafre canudo e tambió :

Destapa o banco, atira o seu fusco, Depois que ao liso cu assento dá, Diz ao outro: «Oh amigo, como está A Rita? O que é feito da Nhonhó ?

«Vieste do Palmar? Foste a Pangin? Jsão me darás noticias da Russu, Que desde o outro dia inda a não vi

Assim prosegue, e farto de gu, O branco, e respeitável canarim Deita fora o cachimbo, e lava o cu.

114 SONETOS

IX

Arreitada donzella em fofo leito Deixando erguer a virginal camisa, Sobre as roliças coxas se divisa Entre sombras subtis pachoclio estreito

De louro pello um circulo imperfeito Os papudos beicinlios lhe matiza; E a branca crica, nacarada e liza, Em pingos verte alvo licor desfeito:

A voraz porra as guelras encrespando Arruma a focinheira, e entre gemidos A moça treme, os olhos requebrando :

Gomo ó inda boçal perde os sentidos: Por('jm vai com tal anciã trabalhando, Que os homens ó que vêem a ser fedidos.

SONETOS 115

Esquentado frisão, brutal masmorro Girava em Santarém na pobre feira ; Eis que divisa ao longe em couva ceira Seus bons irmãos seraphicos de barro :

O bruto, que arremeda um boi de carro Na carranca feroz, parte á carreira, Os sagrados bonecos escaqueira, E arranca de ufania um longo escarro :

N'alma o sancto furor lhe arqueja, e berra; Mas vós enchei-vos de intimo alvoroço, Povos, que do burel soíTreis a guerra :

Que dos bonzos de barro o vil destroço É presagio talvez de irem por terra Membrudos fradalhões de carne e osso !

116 SONETOS

XI

N'esta, cuja memoria esquece á Fama, Feira, que de Santarém vem de anno em anno, Jazia co'uraa freira um franciscano ; Eram de barro os dois, de barro a cama:

Go'amão, que á virgindade injurias trama, Px'etendia o cabrão ferrar-Ihe o panno; Eis que um negro barrasco, um Frei Tutano O espectáculo vê, que os rins llie inflamma :

«Irra! Vens-me atiçar, gente damnada ! ISão basta a felpa dos buréis opacos, Com que a carne rebelde anda ralada?

«Fora, vis tentações, fora velhacos ! . . . » Disse, e ao ríspido som de atroz patada O escandaloso par converte em cacos.

SONETOS -117

XII

Amar dentro do peito uma donzella; Jurar-lhe pelos céos a mais pura ; Fallar-lhe, conseguindo alta ventura, Depois da meia noute na janella:

Fazel-a vir abaixo, e com cautella Sentir abrir a porta, que murmura ; Entrar ante pé, e com ternura Apertal-a nos braços casta e bella :

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos, E a bocca, com prazer o mais jucundo, Apalpar-lhe de neve os dois pimpolhos :

Vel-a rendida em flm a Amor fecundo ; Ditoso levantar-lhe os brancos folhos; É este o maior gosto que ha no mundo. (D)

Í18 SONETOS

XIII

É pau, e rei dos paus, não marmelleiro. Bem que duas gamboas lhe lombrigo ; leite, sem ser arvore de figo, Da glande o fructo tem, sem ser sobreiro:

Verga, e não quebra, como o zambujeiro ; Occo, qual sabugueiro tem o umbigo : Brando ás vezes, qual vime, está comsigo ; Outras vezes mais rijo que um pinheiro :

Á roda da raiz produz carqueja : Todo o resto do tronco é calvo e ; Nem cedro, nem pau-sancto mais negreja !

Para carvalho ser falta-lhe um it; Adivinhem agora que pau seja, E quem adiviniiar metta-o no cu.

SONETOS

il9

XIV

Bojudo fradalhão de larga venta, Abysmo immundo de tabaco esturro, Doutor na asneira, na sciencia burro, Com barba hirsuta, que no peito assenta:

No púlpito um domingo se apresenta; Prega nas grades espantoso murro; E acalmado do povo o gran sussurro ■O dique das asneiras arrebenta.

Quatro putas mofavam de seus brados, Não querendo que gritasse contra as modas Um peccador dos mais desaforados :

«Não (diz uma) tu, padre, não me engodas: ■Sempre me ha de lembrar por meus peccados A noute, em que me deste nove fodas

•120 SONETOS

XV

Aquelle semi-clerigo patife, Se eu no mundo fizera ainda apostas, Apostara comtigo que nas costas O grande Pico tem de TeneriíTe :

Celebre traste! É justo que se rife; Eu também prompto estou, se d'isso gostas Não haja mais perguntas, nem respostas ; Venha, antes que algum taful o bife :

Parece hermaphrodita o corcovado ; Pela rachada parte (que apeteço) Parece que emprenhou, pois anda opado í

Mas d'esta errada opinião me desço : Pois que traz a creança no costado, Deve ter emprenhado pelo sesso.

SONETOS 121

XVI

Porri-potente heroe, que uma cadeira Susténs na ponta do caralho tezo, Pondo-lhe em riba mais por contrapezo A capa de baetão da alcoviteira :

Teu casso é como o ramo da palmeira, Que mais se eleva, quando tem mais pezo Se o não conservas açaimado e preso, É capaz de foder Lisboa inteira !

Que forças tens no hórrido marsapo, Que assestando a disforme cachamorra Deixa conos e cus feitos n'um trapo!

Quem ao ver-te o tezão ha não discorra Que tu não podes ser senão Priapo, Ou que tens um guindaste em vez de porra? (D>

-ili SONETOS

XVII

Dizem que o rei cruel do Averno immundo Tem entre as pernas caralhaz lanceta, Para metter do cu na aberta greta A quem não foder bem n'este mundo:

Tremei, humanos, d'este mal profundo, Deixai essas lições, sabida peta, Foda-se a salvo, coma-se a punheta : Este o prazer da vida mais jocundo.

Se pois guardar devemos castidade, Para que nos deu Deus porras leiteiras, Senão para foder com liberdade?

Fodam-se, pois, casadas e solteiras, E seja isto já; que é curta a edade, E as horas do prazer voam ligeiras. (D)

SONETOS 123

XVIII

Nojenta prole da rainha Ginga, ■Sabujo ladrador, cara de nico, Loquaz saguim, burlesco Theodorico, Osga torrada, estúpido resinga;

E não te accuso de poeta pinga ; Tens lido o mestre Ignacio, e o bom Suppico; De occas idéas tens o casco rico, Mas teus versos tresandam a catinga :

Se a tua musa nos outeiros campa. Se ao Miranda fizeste ode demente, E o mais, que ao mundo estólido se incampa:

É porque sendo, ob Caldas, tão somente Um cafre, um goso, um néscio, um parvo, um trampa, ■Queres metter nariz em cu de gente.

124 SONETOS

XIX

Turba esfaimada, multidão canina, Corja, que tem Deus ou Momo, ou Baccho, Reina, e decreta nos covis de Caco Ignorância d'aqui, d'aUi rapina:

Colhe de alto systema e lei divina Imaginário jus, com que encha o sacco; Textos gagueja em vão Doutor macaco Por ouro, que promette alma sovina :

Circulo umbroso de venaes pedantes. Com torpe astúcia de maligno zorra Usurpa nome excelso, e graus flamantes :

Ora mijei na sucia, inda que eu morra Corno, arrocho, bambu nos elephantes, Cujo vulto é de anões, a tromba é porra!

SONKTOS 125

XX

Magro, de olhos azues, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, 'Triste de faxa, o mesmo de figura. Nariz alto no meio, e não pequeno :

Incapaz de assistir n'um terreno. Mais propenso ao furor do que á ternura, Bebendo em niveas mãos por taça escura De zelos infernaes lethal veneno:

Devoto incensador de mil deidades, :(Digo de moças mil) n'um momento Inimigo de hypocritas, e frades :

Eis Bocage, em quem luz algum talento : "Sairam d'elle mesmo estas verdades ^'um dia, em que se achou cagando ao vento.

-12 i SONETOS

XXI

ísa scena em quadra tragico-invernosa Zaida se impingiu (fradesco drama!) Appareceu depois, com sede á fama, Tragedia mais egual, mais lastimosa :

O auctor prantêa em phrase apparatosa Esfaqueado arraes, pimpão d'i\Jfama ; Corno o protagonista, e puta a dama, O macho é Simeão, e a mula é Rosa :

Espicha o rabo (eu tremo ao proferil-o !> Espicha o rabo alli o heroe na rua, Qual IMuratão nos areaes do Nilo !

Elmiro na tarefa continua, •Tá todos pela escolha, e pelo estylo Rosnam que a nova peça c obra sua.

SONETOS 1'27

XXII

Não tendo que fazer Appollo um dia Ás Musas disse : « Irmans, é beneficio Vadios empregar, dêmos officio Aos sócios vãos da magra Academia :

« O Caldas satisfaça á padaria ; O França d'enjoar tenha exercido, E o auctor do entremez do Rei Egypcio O Pégaso veloz conduza á pia:

«Vá na Ullysséa tasquinhar o ex-frade: Da sala o Quintanilha accenda as velas, Em se juntando alguma sociedade :

Bernardo nenias faça, e cague n'ellas; E Belmiro, por ter habilidade, Como d'antes trabalhe em bagatellas.»

lyS SONKTOS

XXIII

Rapada, amarellenta cabelleira, Vesgos olhos, que o chá, e o doce engoda, Bocca, que á parte esquerda se accommoda, <Uns af firmam que fede, outros que cheira:)

Japona, que da ladra andou na feira; Ferrujento faim, que foi moda No tempo em que Albuquerque fez a poda Ao soberbo Hidalcão com mão guerreira:

Ruço calção, que esporra no joelho, Meia e sapato, com que ao lodo avança, Vindo a encontrar-se c'o esburgado artelho

Jarra, com appetites de creança; Cara com similhança de besbelho; Eis o bedel do Pindo, o doutor França.

SONETOS 129

XXIV

Pilha aqui, pilha alli, vooêa auctores, Montesquieu, Mirabeau, Voltaire, e vários; Propõe systemas, tira coroUarios, E usurpa o tom d'eniphaticos doutores :

Sciencia de livreiros e impressores Tem da vasta memoria nos armários ; E tratando os christãos de visionários, rende culto a Vénus, e aos Amores:

A mulher, que a barriga lhe tem forra Do jugo da vital necessidade, Deixa em casa gemer como em masmorra

Este biltre labéo da humanidade, É um tal bacharel Leitão de borra. Lascivo como um burro, ou como um frade.

9

130 SONETOS

XXV

Não chores, cara esposa, que o Destino Manda que parta, á guerra me conviia; A honra prezo mais que a própria vida, E se assim não fizera, fora indigno.

«Eu te acho, meu Conde, tão menino «Que receio.. .»— Ah! Não temas, não, querida; A franceza nação será batida, Este peito, que vês, é diamantino.

«Como é crivei que sejas tão valente?. . . a Eu herdei o valor de avós, e pães, Que essa virtude tem a ilhistre gente.

«Porém se as forças forem desiguaes? Irra, Condessa! És muito impertinente! Tornarei a fugir, que queres mais?

SONETOS 131

XXVI

Se quereis, bom Monarca, ter soldados Para compor lustrosos regimentos, Mandai desentulhar esses conventos Em favor da preguiça edificados :

Nos Bernardos lambões, e asselvajados Achareis mil guerreiros corpulentos; Nos Vicentes, nos Neris, e nos Bentos Outros tantos, não menos esforçados ;

Tudo extingui, senhor: fiquem somente Os Franciscanos, Lóios, e Torneiros, Do Gentimano aspérrima semente:

Existam estes lobos carniceiros. Para não arruinar inteiramente Putas, pivias, cações, e alcoviteiros.

13'2 SONETOS

XXVII

Veio Muley-Achmet marroquino Com duros trigos entulhar Lisboa; Pagava bem, não houve moça boa Que não prova^^se o casso adamantino :

Passou a um seminário feminino, Dos que mais bem providos se apregoa. Onde a um frade bem fornida iíhòa Dava d'esmola cada dia um pino:

Tinha o mouro fedido largamente, E basofiando com desdouro Tractava a nação lusa d'impotente :

Entra o frade, e ao ouvil-o, como um touro Passou tudo a caralho novamente, E o triumpho acabou no cu do mouro. (!>)

SONETOS Í'3L

XXVIII

Uma noute o Scopezzi mui contente (Depois de borrifar o sacra espada Que traz de rubra fita pendurada Com cuspo, e vinho, que vomita quente:)

Conversava co'a esposa em voz tremente Sobre a grande ventura inesperada De ser a sua Plácida adorada Por um Marquez tão rico, e tão potente :

A veliia llie replica: Isso é verdade; Em quanto moça fòr, nunca o dinheiro Faltará n'esta casa em quantidade.

« Mas tu sempre és o taf ulão primeiro : Pois tendo cabrão, sido n 'outra idade, És agora o maior alcoviteiro I » (D)

i.ii

XXIX

Cagando estava a dama mais formosa, E nunca se viu cu de tanta alvura ; Mas vêr cagar, comtudo a formosura Mette nojo á vontade mais gulosa I

Ella a massa expulsou fedentinosa Com algum custo, porque estava dura : Uma carta d'amores de alimpadura Serviu áquella parte mal cheirosa:

Ora mandem á moça mais bonita Um escripto d'amor que lisonjeiro AíTectos move, corações incita:

Para o ir vêr servir de reposteiro A porta, onde o fedor, e a trampa habita, Do sombrio palácio do alcatreiro ! (D)

SONETOS 135

XXX

Quando do gran ^lartinho a fatal Parca O termo fez soar no seu chocalho, Levou três dias a passar caralho Do medonho Charonte a negra barca:

Eis no terceiro dia o padre embarca, E o velho, que a ninguém faz agaçalho, Em premio quiz ter do seu trabalho O gáudio de vèr porra de tal marca :

Pegou-se ao cão trifauce a voz na guela Ao vêr de membro tal as dianteiras, E Plutão a mulher pòz de cautella :

Porém Dido gritando ás companheiras : «Agora temos porra; a ella, a ella, «Que as horas do prazer voam ligeiras!» (D)

130 SONETOS

XXXI

Dizendo que a costura não nada, Que não sabe servir quem foi seniiora, A impulsos da paixão fornicadora Sobe d'alco\it,eira a moga a escada:

Seus desejos lhe pinta a malfadada, E a tabaquenta velha seductora Diz-lhe: «Veio, menina, em bella hora, Que essas, que ahi tenho, não ganham nada;»

Matricula-se aqui a tal pateta. Em punhetas e fodas se industria, Em quanto a mestra lhe não rifa a greta :

Chega, por fim, o fornicario dia; E em pouco a menina de muleta Passea do hospital na enfermaria. (D)

SONETOS

137

XXXII

Piolhos cria o cabello mais dourado ; Branca remelia o olho mais vistoso ; Pelo nariz do rosto mais formoso O monco se divisa pendurado :

Pela bocca do rosto mais corado Hálito sáe, ás vezes bem ascoroso; A mais nevada mão sempre é formoso Que de sua dona o cu tenho tocado :

Ao d'elle a melhor natura mora, Que deitando no mez podre gordura, Fétido mijo lança a qualquer hora :

Caga o cu mais alvo merda pura ; Pois se é isto o que tanto se namora, Em ti mijo, em ti cago, oh formosura! (D)

138 SONETOS

XXXIII

Se o gran serralho de Sophi potente, Ou do Sultão feroz, que rege a Thracia, Mil Vénus de Geórgia, ou da Circassia Nuas prestasse ao meu desejo ardente :

Se negros brutos, que parecem gente, Ministros fossem de lasciva audácia, Inda assim do ciúme a pertinácia No peito me nutrira ardor pungente:

Erraste em produzir-rae, oh Natureza, N'um paiz onde todos fodera tudo, Onde leis não conhece a porra teza !

Cioso aíTecto, aíTecto carrancudo ! Zelar moças na Europa é árdua empreza, Entre nós ser amante é ser cornudo. (D)

SONKTOS i;W

XXXIV

Não te cinmino a ti, plebe insensata, A van superstição não te crimino ; Foi natural, que o frade era ladino, E esperta em macaquices a beata :

crimino esse heroe de bola chata, Que na eschola de Marte inda é menino, E ao falso pastor, pastor sem tino, Que tão mal das ovelhas cura, e trata:

Item, crimino o respeitável Cunha, Que a frias petas credito não dera, A ser philosopho, como suppunha :

Coitado ! Protestou com voz sincera Fazer geral, contrita caramunha, Porém ficou peor que d 'antes era !

•1-W SONETOS

XXXV

Se tu visses, Josino, a minha amada Havias de louvar o meu bom gosto; Pois seu nevado, rubicundo i"osto As mais formosas não inveja nada:

Na sua bocca Vénus faz morada : Nos olhos tem Cupido as settas posto ; Nas mamas faz Lasciva o seu encosto, N'ella, em fim, tudo encanta, tudo agrada:

Se a Ásia visse cousa tão bonita Talvez lhe levantasse algum pagode A gente, que na foda se exercita !

Belleza mais completa haver não pode : Pois mesmo o cono seu, quando palpita, Parece estar dizendo : «Fode, fode!» (D>

SONETOS 141

XXXVI

Cante a guerra quem fòi* arrenegado. Que eu nem palavra gastarei com ella; Minha Musa será sem par canella Go'um felpudo coninho abrazeado :

Aqui descreverei como arreitado N'um mar de bimbas navegando á vela, Cheguei, propicio o vento, á doce, .cáquella Enseada d 'amor, rei coroado :

Direi também os beijos sussurrantes, Os intrincados nós das linguas ternas, E o aturado fungar de dous amantes :

Estas glorias serão na fama eternas As minhas cinzas me farão descantes Femeos vindouros, alargando as pernas.

142 SONETOS

XXXVII

Fiado no fei^vor da mocidade, Que me acenava com tezões chibantes, Consumia da vida os meus instantes Fodendo como um bode, ou como um frade.

Quantas pediram, mas em vão, piedade Encavadas por mim balbuciantes ! Fincado a gordos sessos alvejantes Que hemorroides não fiz n'esta cidade!

A força de brigar fiquei mamado : Vista ao caralho meu, que de gaiteiro Está sobre os colhões apatetado :

Oh Numen tutelar do mijadeiro! Levar-te-hei, se tornar ao tezo estado, Por oíT'renda espetado um pirramelro.

SONETOS 143

XXXVIII

Eu foder putas?. . . Nunca mais, caralho ! Has de .iurar-m'o aqui, sobre estas Horas: E vamos, vamos ! . . . Porém tu choras ? «Não senhor (me diz elle) eu não, não ralho:»

Batendo sobre as Horas como um malho, « Juro (diz elle) foder senhoras, Das que abrem por amor as tentadoras Pernas áquillo, que arde mais que o alho.»

Go'a força do jurar esfolheando O sacro livro foi, e a ardente sede O fez em mar de ranho ir salucando. . .

Ah ! que fizeste ? O céo teus passos mede ! Anda, herético filho miserando, Levanta o dedo a Deus, perdão lhe pede !

SONETOS

XXXIX

«Ora cleixe-me, então. .. faz-se creança? Olhe que eu grito, pela mãe chamando Pois grite (então lhe digo, amaiTOtando Saiote, que em baixal-o irada canoa) :

Na quente lucta lhe desgrenho a trança, A anagoa lhe levanto, e fumegando As estreitadas bimbas separando lihe arrimo o caralhão, que não se amança;

Tanto, a ser giria, não gritava a bella Que a cada grito se escorvava a porra, Faz?ndo-lhe do cu saltante pella!

Ha de pagar-me as mangaçues de borra, Basta de cono, ponha o sesso á vela, Que n'elle ir quero visitar Gomorrha.

SONETOS 145

XL

Pela rua da Rosa eu caminhava Eram sete da noute. e a porra teza ; Eis puta, que indicava assas pobreza, Go'um lencinlio á janella me acenava :

Quaes consellios? A porra fumegava; «Hei de seguir a lei da natureza Assim dizia e eíTeituou-se a empreza ; Prepúcio para traz a porta entrava :

Sem que saúde a moça prasenteira Se arrima com furor não visto á crica, E a bella a molle-moUe o cu peneira :

Ninguém me gabe o rebolar d^Annica ; Esta puta em foder excede á Freira, Excede o pensamento, assombra a pica !

10

iiG SONETOS

XLI

Apre ! Não mettas todo ... Eu mais não posso ...»

Assim Mareia formosa me dizia ; •!

Não sou bárbaro moça eu respondia) :

Brandamente verás como te coço: ;

«Ai ! por Deus, não...não mais, que é grande e grosso!» QiXem resistir ao seu f aliar podia! Meigamente o coninho lhe batia ; Ella diz: «Ah meu bem! meu peito é vosso!»

O rebolar do cu (ah!) não te esqueça. . . Gomo és bella, meu bem ! (então lhe digo) Ella em suspiros mil a ardência expressa:

Por te unir faze muito ao meu umbigo ; Assim, assim. . . menina, mais depressa !• . . Eu me venho, . . ai Jesus ! . . . vem-te comigo !

SONETOS 447

XLII

Vem cá, minha Maria, tão roliça, Co'as bochechas da cor do meu caralho, Que eu quero vêr se os beiços embaralho Go'esses teus, onde amor a ardência atiça

Que abrimentos de bocca! Tens preguiça? Hospeda-me entre as pernas este malho, Que eu te ponho teza como um alho ; Ora chega-te a mim, leva esta pica. . .

Ora meche. . . que tal sabe, amiga? Então foges c'o sesso? É forte historia! Elle é bom de levar, não, não é viga.

«Eu grito!» (diz a moça menencoria) Pois grita, que espetada n'esta espiga Com porraes salvas cantarei victoria.

•148 SONETOS

XLIII

Dormia a somno solto a minha amada, Quando eu ante no quarto entrava E ao vêr a linda moça, que arreitava, Sinto a porra de gosto alvoraçada :

Ora do rosto seu vejo a nevada Pudibunda bochecha, que encantava ; Outr'ora nas maminhas demorava SoíTrega, ardente vista embasbacada :

Porém vendo sahir d 'entre o vestido Um lascivo pésinho torneado, Bispo-lhe as pernas e fiquei perdido :

Vai senão quando, o meu caralho amado Bem como Enéas acordava Dido, Salta-lhe ao pello, por seguir seu fado.

SONETOS 149

XLIV

Eram eito do dia ; eis a creada Me corre ao quarto, e diz : « Ahi vem menina, Em busca sua ; faces de bonina, Olhos, que quem os viu não quer mais nada.»

Eis me visto, eis me lavo, e esta engraçada Fui vêr in contmentí ; oh céos! que mina ! Que breve ! Que perna tão divina! Que maminhas ! que rosto! Oh, que é tão dada!

A porra nos calções me dava urros; Eis a levo ao meu ieito, e ella rubente Não podia soíYrer da porra os murros ;

« Ai ! . . ai! . . (de quando em quando assim se sente) Uma porra tamanha é dada aos burros, Não é porra capaz de foder gente.»

150 SONETOS

XLV

Pela escadinha de ura courão subindo Parei na sala, onde não entra o pejo ; Gliinello aqui e alli suado vejo, E o fato de cordel pendente, rindo :

Quando em miséria tanta reflectindo Estava, me appareceu nympha do Tejo, Roendo um fatacaz de pão com queijo, E para mim n'um ai vem rebolindo:

Dá-me um grito a razão : « Eia, fujamos Minha porra infeliz d'este inferno.. . Mas tu respingas? Tenho dito, vamos...

Eis a porra assim diz: «Com ódio eterno Eu, e os sócios colhues em ti mijamos ; Para baixo do umbigo eu governo.»

SONETOS 451

XLVI

Eram seis da manhã ; eu acordava Ao som de mão, que á porta me batia ; Ora vejamos quem será. . . dizia, E assentado na cama me zangava.

Brando rugir de seda se escutava, E sapato a ranger também se ouvia. . . Salto fora da cama. . . Oh ! que alegria Não tive, olhando Armia, que arreitava !

Temendo venha alguém, a porta fecho ; Go'um chupão lhe saudei a rósea bocca, E na rompente mama alegre mecho :

O caralho estouvado o cono aboca ; Bate a gostosa greta o rubro queixo, E a matinas de amor a porra toca.

152 SONETOS

XLVII

« Mas se o pae acordar ! . . . (Mareia dizia A mim, que á meia noite a trorabicava)

tf Hoje não. . . (continua, mas deixava Levantar o saiote, e não queria!)

Sempre em a'dizer: «Então, avia. Sesso á parede, a porra me aguentava: Uma cousa notei, que me arreitava, Era o calçado pé, que então rangia :

Vim-me, e assentado n'um degrau da escada. Dando alimpa ao caralho, e mais á greta. Nos preparámos para mais porrada :

Por variar, nas mãos metti-Ihe a teta ; Tosse o pae, foge a filha. . . Oh vida errada ! me ficou em meio uma punheta !

153

XLVIII

Quando no estado natural vivia Mettida pelo malto a espécie humana, Ai da gentil menina deshumana, Que á força a greta virginal abria !

Entrou o estado social um dia ; Manda a lei que o irmão não foda a mana, É crime até chuchar uma sacana, E péza a excommunhão na sodomia:

Quanto, lascivos cães. sois mais ditosos ! 8e na egreja gostais de uma cachorra. mesmo, ante o altar, fedeis gostosos :

Em quanto a linda moça, feita zorra. Voltando a custo os olhos voluptuosos, Põe no altar a vista, a idéa em porra.

154 SONETOS

XLIX

Levanta Alzira os olhos pudibunda Para vêr onde a mão lhe conduzia; Vendo que n'ella a porra lhe mettia Fez-se mais do que o nácar rubicunda :

Toco o pentelho seu, toco a rotunda Lisa bimba, onde Amor seu thiono erguia; Entretanto em desejos ella ardia, Brando licor o pássaro lhe inunda:

Co dedo a greta sua lhe coçava; ELla, machinalmente a mão movendo, Docememente o caralho me embalava :

«Mais depressa B lhe digo então morrendo, Em quanto ella signaes do mesmo dava; Mistica pivia assim fomos comendo.

SONETOS 455

Uma empada de gallico á janella, Fazendo meia, alinhavando trapos, Em quanto a guerra faz tudo em farrapos, Pondo o honrado a pedir, e a virgem bella !

Vai a trombuda, sórdida Michela Fazendo guerra a marujaes marsapos, E sem que d'estes mil lhe façam papos, Co sesso também ás porras trela :

Tudo em metal por dous canaes ajunta; Recrutas nunca teme, e do Gastello Se ri, que aos beleguins as mãos lhes unta :

Nas publicas f uncções vai dar-se ao prelo ; Minh'alma agora, meu leitor, pergunta Se o ser puta não é officio bello?

150 SONETOS

LI

Com que magua o não digo ! Eu nem te vejo, Meu caralho infeliz ! Tu, que algum dia Na gaiteira amorosa filistria Foste o regalo do meu pátrio Tejo!

Sem te importar o feminino pejo, Traz a mimosa virgem, que fugia, Fincado á terna, afadigada Armia, Lhe pespegavas no coninho um beijo :

Hoje, canal de fétida remella, O mysantropo do paiz das bimbas, Apenas olhas cândida donzella !

Deitado dos colhões sobre as tarimbas, co'a memoria em feminil canella Ás vezes pivia casual cachimbas.

SONETOS 157

LII

Que eu não possa ajuntar como o Quintella É cousa, que me afflige o pensamento; Desinquieta a porra quer sustento, E a pivia trata de bagatella:

Se n'outro tempo houve alguma bella Que a amor desse o cono pennugento, Isso foi, não é; que o mais sebento Gagaçal quer durazia caravella:

Perdem saúde, bolça, e economia; Nunca mais me verão meu membro roto; Esta a minha porral philosophia.

Putas, adeus ! Não sou vosso devoto; Co' um sesso enganarei a phantasia, N'uma escada enrabando um bom garoto.

MISCELÂNEA

DECIMAS

A UM TABELLIÃO VELHO, QUE CASOU COM MOÇA NOVA

Um tabellião caduco Com mulher moça casado, Vai 2wrtar no seu estado Por o signal de cuco: Como não não deita sueco Por mais que puxe os atilhos, Não lhe hão de faltar casquilhos Para a moça amantes novos, Que lhe vão galando os ovos, E elle creando os filhos.

II

Elle diz que assim o quer; Mas de raiva dará pulos, Vendo que são actos nullos Os actos que elle fizer:

MISCELÂNEA

Sem ter direito á mulher Que será d'este demónio? Logo então qualquer bolonio Lhe desmancha o casamento, Porque não tem instrumento Com que prove o matrimonio.

III

Tenha embora muita renda, Seja lavrador morgado, Mas para homem casado Sempre tem pouca fazenda: É provável se arrependa A pobre da rapariga. Que se agatanhe e maldiga, Quando na noute da boda Correr a ceara toda, E não encontrar espiga.

IV

Inda que não tome a mona Por ter fibra cangada. Mal pode assistir á entrada De Carlos era Barcelona: < Que o leve ao porto de Ancona Não terá vento ponteiro,

459

IGO MISCELÂNEA

E andando sempre em cruzeiro Que fará esle homem raro? Ser como os cães, que teem faro : Conhecel-o pelo cheiro.

Por mais que moça infeliz Faça protestos d'amor, Sempre se quer fiador D'homem sem bens de raiz : crerá no que elle diz Se ei^criptura lhe fizer ; E elle pode-lhe fazer Uma dúzia, e uma centena; Mas nunca molhando a penna No tinteiro da mulher.

VI

São tristes da moça os fados, Pois lhe não consentem que ella Avance pela Arreitella Pica de Regalados ; Logo entre estes dois casados Se trava renhido pleito, Mas se por aggravo o feito Elle leva á Relação, ninguém lho razão, Sem que mostre o seu direito.

MISCELÂNEA 461

MOTTE

o INFERNO DO CIÚME

GLOSAS

I

Esse abysnio, esse Orço eterno Não é filho da razão ; Os pavores da illusão É que pariram o inferno : Pelo sizo me governo, Que louco e falso a presume ; Mas, se não creio esse lume, Nem esse invento maldito Por exp'riencia acredito O inferno do Ciúme.

II

Em vão pregador rançoso do púlpito vozeia. Quando a triste imagem feia Traça do inferno horroroso : É systema fabuloso,

11

162 MISCBLANEA

Que á razão embota o gume ; Não, não ha Tartareo lume, Que devore a humanidade : Sabeis vós o que é verdade ? O inferno do Giume.

Venha cá, Boticário, Vossê sabe em que se mette, De tão rafado cadete Sendo terceiro, está vario ? Advirta que é necessário Reportar acções insanas ; Estude em fazer tisanas, Algum purgante ligeiro, Mas não seja alcoviteiro Muito menos de sacanas.

P'ra que viva a cosinheira, Que tão boas papa.t fez ! Confesso por esta vez Que bem me sabe e me cheira : O Papa em sua cadeira Vestido de estolla e capa Não faz cousa tão guapa : A cosinheira faz mais; O Papa faz Cardeaes, A cosinheira faz papas.

MISCELÂNEA 1(53

DIALOGO ENTRE O POETA E O TEJO

POETA

Tejo que tens, estás quedo? Não banhas hoje esta praia? De que o teu valor desmaia?

TEJO

Eu t'o digo, mas segredo : Confesso que tenho medo Do teu ranchinho infernal.

POETA

O teu susto é natural, Parecem três furiasinhas, Mas comtudo são mansinhas, Não mordem, não fazem mal.

São uns cornos mui bem feitos Uns cornos mui delicados, São cornos, que torneados Se podem trazer aos peitos : Cornos que sobem direitos. Pela sua varonia, E sem mais chronologia Tem gravados na armadura Os timbres da fidalguia.

164 MISCELÂNEA

IMPROVISO

Á meia noite Saiu de um cano Cheio de merda Grispiniano.

Eis que da ronda Tropel insano Divisa ao longe Grispiniano.

Gapuz o cobre ff És franciscano?» Sou (lhe responde) «Grispiniano».

Ghega o alcaide, Dá-lhe um abano ; Sáe da gravata Grispiniano.

ELEGIA

A MORTE DE UMA FAMOSA ALCOVITEIRA

Génio dado a sórdidas torpezas, Que usas comprar na immunda Cotovia Chochos agrados de venaes bellezas :

Solto o cabello, as carnes arripia Na morte d'esta illustre recoveira, E inspira-me tristíssima elegia.

Honrada, e a mais sabida alcoviteira, A ti consagro este cypreste umbroso, Com que te enramo a esquálida caveira;

Emquanto pelo rio pantanoso A ouvir te leva o pallido Charonte Severas leis de Minos rigoroso.

Alçando pai*a o ar a crespa fronte Os ouvidos estende ás vozes minhas. Quando no mundo os teus louvores conte.

Vós, moças do Bairro-Alto e Fontainhas, Vós testemunhas sois da grande falta Que chorando contais entre as visinhas.

ititi MISCELÂNEA

Ai! Que ha de ser de vós, gente de malta? Eu vejo em vossas faces o desgosto, E a dôr, que os corações vos sobresalta !

Morreu a vossa mãe, o vosso encosto. Que vos ganhava o pão honradamente, Inda que com suor do vosso rosto !

Não mais vereis entre a mundana gente D'aquella honrada bocca o grato riso, Que descobria um solitário dente !

Morreu a discreção, foi-se o juizo. Vós o sabeis : melhor que esta viuva Ninguém fez um recado de improviso.

Embrulhada na capa ao vento, á chuva, EUa comprar-vos ia caridosa As ginjas, os melões, a pêra, a uva :

Vendo qualquer de vós triste e chorosa, Ella desassocega, ella trabalha Por livrar-vos da pena lamentosa.

Conhecia os tafues pela malha, Ella vos apartava dos sovinas, Para aquelles que dão maior medalha :

Chupista de dinheiro e de tolinas. Por todas repartindo esta pendanga, Ella era o vosso bem, e as vossas minas.

Cos homens depravados tinha zanga. Gostava da modéstia, e da virtude Dos que dão a beijar cordão e manga.

Se a mandavam beber, era um almude, E ás vezes não parava até que a bocca Se lhe punha mais grossa do que grude.

MISCELÂNEA ÍÕ7

A que a buscava, e que não era louca, A recolhia em casa, e pela mama Apenas lhe levava cousa pouca.

Sempre de todas dava boa fama, De freguezes lhe armava quantidade, as pôr sobre si com casa e cama.

Nos ganhos levou nunca metade ; Qualquer cousa aceitava, porque pensa Que o mais era faltar á caridade.

Dotada foi de caridade immensa ; Sempre ao lado se achou da sua amiga No tempo da saúde, e da doença.

Aquella moça gordalhuda o diga : Ella pode pintar mais vivos quadros D'esta estimável, d'esta amante liga.

No tempo em que ella andou vagando os adros. Mil vezes lhe curou c'os seus inventos Cruéis camadas de piolhos ladros.

Ella mesma c'os dedos fedorentos Cheia de amor, de caridade cheia, Lhe ministrava os fétidos unguentos.

A frouxa luz da tremula ca"ndeia. Que tem no chammejar seus intervallos, As chagas cura, a porquidade aceia :

De alvíssima pomada untando os callos, As partes amacia, que mordera O dente de ardentíssimos cavallos.

Jamais no seu trajar luxo tivera, Nem na sua cabeça houve polvilhos, Depois que seu marido lhe morrera.

168 JIISCKLANEA

Foi a primeira em dar ensino aos filhos ; Procurai este trilho verdadeiro Vós, oh pães, que seguis diíT'rentes trilhos.

Uma filha, que Deus lhe deu primeiro, Arrimada a deixou com loja aberta: Teve um filho que foi alcoviteiro.

Eia, pães de famílias, olho alerta; Se quereis vossos filhos empregados, Tendes século bom, e é moca certa.

Dispoz da sua terça, que tirados Os gastos funeraes, que lhe fariam Os devotos irmãos, gatos-pingados.

Os seus testamenteiros comprariam Co resto uma barraca, em que decente Uma casa d'alcouce erigiriam :

Que haveria noviças e regente; Proveu logo este cargo na Coveira, Por ser mais respeitosa, e mais prudente:

A Santarena fica thesoureira : Chamou para escrivã a Ignacia China, Felícia de Chaté madre rodeira.

Ninguém melhor os seus vinténs destina, Porque para solteiras e casadas Vejam que seminário de doutrina !

Entre as ultimas vozes trancadas. Chamando a filha com afago, e rogo Ficaram entre os braços enlaçadas.

«A mecha (lhe diz ella) junto ao fogo « É fácil de pegar. . . ■> Ia adiante, Porém não disse mais, que morreu logo.

MISCELÂNEA 169

De pallidez cubriu-se-lhe o semblante, Ouviram-se ao redor gritos immensos Da turba feminil, pouco constante.

Ternos suspiros pelos ares densos Vão abraçar seu cadáver frio, Gobrem-se os olhos de engomados lenços.

Cortou a Parca d'esta vida o fio, O esp'nto nú, da carne desatado, vai cruzando o lutulento rio.

Oh dia com razão amargurado ! Em quanto nos lembrar tão triste imagem. Sempre serás dos bons tafues chorado.

Cubrir tu viste com pezada lagem Aquella que nos fez o beneficio De nos dar uma casa d'estalagem.

Ninguém soube melhor do seu officio; Nem se achara tão destra alcoviteira Somente com trinta annos d'exercicio.

E vós, mulheres que gostais d'asneira, Honrai as suas cinzas, os seus ossos, E respeitai-lhe a fúnebre caveira.

A morte nos velhos e nos moços; Ninguém se escapa da carranca feia Depois de preso em seus calabres grossos.

Conservai pois esta fatal idéa, E rodeando o corpo desditoso, Accendei cada qual uma candeia.

E fazei-lhe um sepulchro apparatoso.

NOTAS

PAG. 7 A RIBEIRADA

Este poema parece ter sido um dos primeiros en- saios da musa de Bocage. loducções fundadas em boa razão nos levam a conjecturar que a composição d'elle data de tempos anteriores ao da partida do poeta para Gôa, isto é, do anno i785. O transumpto pelo qual se fez a presente edição, é sem duvida preferível por sua correcção ao de que se serviu quem ha bastantes an- nos fez imprimir em Paris o referido poema, juntamente com outras poesias do mesmo género em um folheto de oitavo grande. Posto que sobejem fundamentos para jul- gar reaes as personagens, e passados em verdade os factos, que despertaram a veia satyrica do poeta, sus- citando-lhe a ideia de tal composição, não é comtudo possível entrar em algumas particularidades a esse res- peito : e até julgamos pouco provável que, mesmo em

NOTAS 171

Setúbal, se conserve ainda a memoria das façanhas do azevichado heroe, que mereceu obter a immortalidade nos versos do Bardo do Sado.

PAG. 21— AMANTEIGUI

Resumindo aqui as indicações constantes de uma no- ta, que encontramos appensa a um antigo manuscripto d'este poema, sem todavia nos responsabilisarmos por sua veracidade, diremos que a protogonista D. Anna Jac- ques Manteigui, natural de Damão, vivia na cidade de Gôa em companhia de um marido de boa feição (cujo Dome e circumstancias não vieram ao nosso conheci- mento). Esta dama tornava-se notável não menos pela sua belleza que por sua desenvoltura e ambição ; e sa- bia fazer dos seus encantos um trafico por extremo lu- crativo. D. Frederico Guilherme de Sousa, então Gover- nador geral da Índia, apaixonando-se por ella, a tomara por sua amiga ; porém isso não obstava a que ella não lhe fizesse repetidas infidelidades. Entre outras era ac- cusada pela voz publica de entreter luxurioso commer- cio com um negro, seu escravo, moço bem fornido, ao qual dava de graça o mesmo que o Governador po- dia comprar por alto preço ! Disse-se que na presente composição entrara por muito a vingança pessoal de Bo- cage, despeitado porque a dama se recusara aberta-

172 NOTAS

mente a correspnnder-lhe, pleiteando elle com anciã os seus favores. O que parece fora de duvida é que d'aqui lhe proveio em parte a sua desgrapa : pois que chegan- do esta satyra às mãos de D. Frederico, este se julgou altamente oífendido na pessoa da sua bella, e irritado contra o poeta o mandou incontinente deportado para Macau, d'onde a muito custo pôde obter licenpa e meios de transportar-se a Lisboa.

Do poema «Manteigui» temos visto três ou quatro edições diversas; todas feitas, ao que parece, em Lis- boa. Não nos ligamos a alguma em particular, mas apro- veitamos de todas as variantes que ofFereciam visos de mais correctas, confrontando-as sempre cora os manus- criptos que possuíamos, e preferindo em todos os casos o que se nos afigurava por mais exacto, e conforme a& texto original.

PAG. 29 A EMPBEZA NOCTURNA

Esta peça, mais conhecida sob a denominação de «Noite de inverno» e por vezes impressa, tem sido quasi universalmente altribuida a Bocage ; pareceu por- tanto que não devia omittir-se na presente edição. De- vemos porém declarar aos leitores, que segando o tes- temunho de pessoas mui auctorisadas, ella não é obra do nosso poeta, e sim do seu contemporâneo e amigo

NOTAS 173

Sebastião Xavier Botelho. De outras, que estão em caso análogo, e que similhautemente vão aqui incorporadas, iremos dando razão nos legares competentes.

PAG. 36— EPISTOLA A MARÍLIA

Todas as pessoas lidas na historia de Bocage sabem que esta epistola, e o soneto que damos a pag. 106 do presente volume, lhe serviram principalmente de corpo de delicto, quando, perseguido por ordem da Intendên- cia geral da policia, foi afinal preso em 10 de agosto de 1797; sendo então transportado de bordo da embar- cação onde se refugiara para os segredos da cadeia do Limoeiro, e d'ahi passados alguns mezes removido para os cárceres da Inquisição. (Veja-se o «Estudo Biographi- co» que vem no tomo i das Poesias de Bocage, edição de 1853, a pag. xi e seguintes.)

António Maria do Couto nas «Memorias» que escre- veu acerca da vida do poeta, aíTirma em tom decisivo que a Epistola a Marília fora feUa por occasião de ser seu r)iestre um frade {graciano) que a requesta- va: assim será; mas parece-nos, lendo esta composição, que o poeta exigia da sua bella mais alguma cousa do que pol-a de aviso contra as seducções do frade.

Quando começaram a divulgarse algufnas cópias d'esia epistola, vários engenhos devotos e de animo ti-

174 NOTAS

morato, escandalisados justamente da errónea philosophia do auctor, e muito mais do modo impio e libertino com que elle dogmalisára, estabelecendo e propalando prin- cípios tão anti-religiosos, e anti-sociaes, entenderam que era do seu dever opporem-se a taes doutrinas : para que o antidioto seguisse de perto o veneno, julgaram por melhor servir-se das mesmas armas, empregando eguaimente a linguagem das musas, e ligando á força de raciocínios as graças da metrificação. Das «Refuta- ções» que n'este sentido appareceram conservamos duas em nosso poder; e como as suppomos desconhecidas pa- ra o commum dos leitores, ahí lh'as apresentamos, de- sejando que n'ellas encontrem um correctivo seguro contra as falsas e seductoras máximas da epístola boca- giana.

A primeira é obra de Manoel Thomaz Pinheiro d' Ara- gão, admirador e amigo de Bocage, fallecido ha poucos annos, e que por muitos exerceu em Lisboa cora bons créditos o m.agisterio na instrucção da mocidade. Quan- to ã segunda não pudemos, apesar de toda a diligencia, conhecer até agora o nome do seu auctor.

NOTAS Í75

AííTí-PÂVOROSA-PARODlUHRm

I

Fatal maldição da Eternidade, Dos vivos illusão, vida dos mortos ; Ou gloria para sempre, ou sempre inferno De desordens, de crimes oppressora. Não forjada por déspotas, por bonzos. Mas sim por divinal credulidade ; Dogma infallivel, que o prazer arreigas Quando a sizania c'o remorso arrancas ; Dogma infallivel, favorável crença. Digno premio de peitos innocentes, Das delicias gosandò, que mal fingem Impávidos á fúria Gentimanos, Que vomitando estão perpetua chamma; Superiores motejam o seu engano. No limiar das Parcas, eis o quadro Que observa em vivas cores a ignorância, Igualmente a sciencia em vivas cores ; Inda que eu por sciente conheço A quem teme os castigos no ameaço, A quem teme tornar um pae tyranno,

170 NOTAS

A quem lamenta inúteis suas preces,

Por mais que em giro ao throno elle as espalhe.

Teme o sábio que um Deus irado o fira,

E penitente vai, supplica a vénia

Ao dispenseiro seu, nobre e sagrado;

Que ora as graças lhe abre, ora as ferrolha ;

As graças, que co'as leis da natureza

Se ligam sempre, eternas, necessárias,

E quando a vontade as torna em crimes

Cruel desunião n'ellas fomenta ;

Por vel-a rebellada lhe fulmina

Prisões suaves no jejum, cilicio.

Que n'um geral concelho lhe arbitra:

Humilde, pede resarcir-se a benção ;

Soberba, porque quer desenfadar-se

No jugo que remata nas delicias,

Recáe n'outro maior, que a morte vende.

II

E inda dizem que Deus é vingativo. Se com razão sacode o raio ardente?.. . Antes te louvarei, porque não deste O justo premio a muitos, que arrojando Contra si tremendíssima sentença Julgam pela grandeza própria o crime, E não querem fazer seu peito escravo No castigo, que affirmam ser-lhes duro! Será eterna a pena n'esses peitos,

NOTAS 177

Que d'um Deus se não movem ao interesse,

E o desaggravo indómito atlribuem

Menos ao Sempiterno, do que a todos

Temendo perdurai* como a mesma alma,

Verdades proferidas nos altares ;

Onde ha satisfação, e não cruezas:

Vemos alli ministro venerando,

Longe de renovar suppostos ódios,

Defendendo nos crimes a innocencia,

Primeiro recusando alto domínio,

Co pezo superior por tempo incita: '

Eil-o na honra altíssima abrazado,

Com sangue apaga innundações de fogo ;

Testemunhas do zelo a voz, e a espuma;

Mandado por um Deus, tão bom como elle,

Pede ao Senhor não multiplique exemplos

Com que se consterna a phantasia!

Victima impura de outra vez no povo,

Livremente seu povo entrega á morte:

Defuncto o servo, que esfriava os raios.

Punia sem limite o Omnipotente ;

Inda lembra ao Sinai tremer-lhe a terra,

Quando Adonai lhe intima seus decretos.

Ah! Moysés, que não podes ser astuto,

Contra a publica voz, que assim troveja;

O teu povo confessa os seus furores,

Quando entregue de um Deus á justa raiva

Sua clemência, succumbia á tua:

Na inteireza, que tens, creio ; confio

Que a tocha da verdade te precede,

12

•178 NOTAS

Para mais deslumbrar aos que te oíTendem :

Que se o ferro fatal não se ensopa

No resto d 'estas animadas cinzas,

Da lei da graça os divinaes incensos

Por disfarçar a pena tornam surdos

A voz interna os que não crêem no inferno

Tremenda lei, se a pena liie retardas!

Mas se lh'a appressa executor propheta

Lhe acalmas as iras, porque vai, diffunde

O pavoroso medo nos sequazes

í)o idolatra e espantoso fanatismo.

Gonvocam-se os levitas, os (juaes matam

Aos cúmplices de tal atrocidade:

Comprimida gemeu a Natureza;

Por um Deus os consortes, pães e fillios

Com seu sangue as espadas, vestes tingem ;

Recobra o pae quem faz o parricidio,

E aos campos que de victimas se alastram

Chovem mil novas graças como em rios.

Acalmada a justiça a teus clamores,

Por honra do teu Deus, servo sedento,

Co' um estrago evitas mil estragos,

Ferrando a todos do leão as garras.

E tu, Ímpio, as blasphemias que derramas

Escusas, lendo a historia dos tyrannos.

Os de Israel não foram que este exemplo

Tomaram por fazer pezado o jugo;

Por uma vil paixão, cruel, não manches

Os direitos de um Ser eterno, augusto.

De um Deus real Moysés real valido

NOTAS 179

Deu culto á verdade, corte ao génio, E código de leis mais necessário Deu a todos, que a bem de si o imitam. Prova fiel de que um Deus senhor existe.

III

O quadro original eis, oh Marilia, Em que a verdade ha tempos anda envolta, Sem que pincéis deslustrem d'esses tempos Os que fieis copiam pincéis nossos. Tradição verdadeira desarreiga Toda a suspeita de falaz doutrina. Quando entre mil e mil preoccupados Nos podemos suppôr de hórridas sombras, Formando povo, juram que a piedade Existe em Deus, inda quando te flagella. Não julga o Ímpio assim, que todo é fogo. Que o Deus tem nas iDaixões, e vive d'ellas; Forma um Nume, que ao seu ditame ajusta, E por elle regula a infeliz vida. Simulacro libérrimo é suave, Dirige a seu exemplo as acções todas, E em tanto que se escuta a natureza, Vai fugindo a razão, e cega a muitos. Ambas, sendo guiadas, não diflerem. Dos factos aos reflexos conduzem ; E a mesma, que soccorre ao indigente, Que alenta, que consola o triste afflicto,

-180 NOTAS

A mesma em si reflecte consternada Quando algum seu alumno entrega os pulsos Voluntário de amor ás vis algemas : Amor, que uma inspirou, ambas approvam, E ambas murmuram aliás da insânia Que os humanos colloca a par dos brutos, Queda, vicio total, que os desacorda, Do qual preoccupados, uns aos outros Invencíveis motivam feros males. Ahl não sejam Marilia, nossas mentes Tomadas do diclame em que jaz crime ! Do remorso a lembrança evite a culpa; ! Um Deus em nosso bem benigno existe, Que te pode estudar o pensamento Ao golpe do que frágil se arrepende. Não são aos actos intenções oppostas, Antes estas áquelles dando exemplos Na contemplação própria culpam a alma.

IV

Supplemento d'acção faz doce encanto O que antes era objecto de terrores, E convertido n'um final interesse Emprega a bem dos crentes a astúcia ; Oxalá, doce amada, que no inferno Não padecesse o pensamento angustias Do crime o galardão, merecido premio! Que eu de amor aos fatídicos embustes

NOTAS 181

Me entregara por ti, se o não houvera! Além de contemplar-te deusa bella, Novo altar te formara em minha mente. Mas ah ! que a minha lei, se rigorosa Mostra um semblante no exfrior severo. Seus nobres fms a tornam jugo amante, Goncedendo-me em doce ajuste sacro A posse eterna do que pinta a idéa ! Em teus dotes mais ricos do que o mundo Tu bem podes gravar pacto solemne. Que é desejado mais quando te esquivas: Porque o pejo innocento foge ao laço Que inculcando te estou, te estou pedindo. Sacra alliança pedem teus direitos Por belieza e traição extorquidos. Approva ternamente o jus paterno A chamma, quando pura se aíToguéa. Então desfructarás da liberdade. Quando maior sentires este jugo ^

Quando quer sustentar que amor com guardas Influencias não pode ter propicias, Emmudeça também o louco Elmano, Que ignora do seu Deus os sanctos lares, E quer solemnisar a união das almas Dando por testemunhas venerandas As trevas, a pezar que nada sejam: Deixado o sacerdote, ampliado o templo,

1 Na copia que temos presente falta o verso seguinte.

ÍS'Í NOTAS

Celebra o matrimonio em toda a terra; Quem faz caso porém de seus transportes? Seu coração ao menos desafogue Em proclamar, mas por que não incita O vedado prazer do horrível nome. E querendo render nossas vontades Go'as falsas persuasões, que mal recebem, Na religião pretende amortecer-te, Porque possa appetite aviventar-te. Ah! que não se propõe ser teu amante Quem quer na confusão de mil suspiros Tão infeliz fazer-te quanto é elle! Entretanto, Marília, não te prives D'outras estimações de quem te adora ; Da minha lei tu podes ser amada, E amares, se á razão não fores surda. Meu coração de ver-te enfeitiçado Emprega provas mil suas, e minhas, Porque ames, sem deixar de ser ditosa. Deve a religião guiar teu gosto, A lembrança flnal desterre o crime : Que apezar do vicioso que pregoa. Existem céos, existe o negro inferno : Lauréa-se n'aquelles a virtude, Arderá n'este para sempre o vicio.

Até aqui M. P. Thomaz Pinheiro d' Aragão. Yeja-se agora a refutação anoiíyma.

NOTAS 183

EPimUO ACCTOR DA «PMOSA»

Sacrílego impostor, que renovando Os antigos delidos da ignorância, Mil vezes felizmente refutados, Pretende illudir a innocencia. Fabricando um systema monstruoso, Incrível mesmo aos olhos da impiedade : Quando a mão temerária assim levantas Contra o dogma fatal da etei'nidade, Aviltando o teu ser, dize, profano, Não te grita a razão Suspende o braço? Esse Deus, que confessas amoroso, Deus de paz, pae dos homens, não flagello, Com esses attributos desempenha Com frouxa indiíTerença submergindo No embrião do nada aquelles entes Em que quiz esculpir a sua imagem"? Onde estará o amor, onde a ternura D'esse Ente nosso pae? Em ter creado De motu próprio uns miseráveis entes, Que depois de passarem opprimidos Sobre este globo cheio de trabalhos. Devem ser outra vez depois da morte Reduzidos ao nada ? Dize, infame, O que vai a virtude, essa virtude A custa de mil lagrimas comprada. Se a alma não passa além da sepultura,

184 NOTAS

Onde pode achar a recompensa ? Para que o feio vicio é condemnado, Que os sentidos encanta e lisongéa? Se da nossa existência é o sepulchro O novíssimo termo, é impiedade Contrastar o appetite, e devem todos Ás ávidas paixões largar as rédeas, Por mais felicidade não se espera.

Réo de taes sentimentos, e dos crimes Que são d'elles precisas consequências, Atreves-te a chamar sonho, e chimera Esse logar terrivel, que desejas Não existisse para teu ílagello ! Dogma fatal, mas dogma necessário, Cuja existência negar se atreve Quem pondo-se ao nivel dos mesmos brutos A razão, como tu, tem degradado ! Dize, infeliz : se o homem virtuoso Vês sem estimação, sem recompensa, Luctando com a desgraça, em dura guerra Com as suas paixões continuamente, Se o vês dos orgulhosos opprimido, Ua miséria arrastando as vis cadéas, E os flagellos soífrendo da injustiça, Rrás que o justo Dcus adormecido Lhe não reserva digna recompensa De o chamar no seu seio, repartindo Com elle os dons da doce eternidade ? Se o Ímpio vês, pizando impunemente As sanctas leis aos pés, e da ventura

NOTAS 185

Os favores gosar, se o vês honrado, E talvez recebendo inda favores Por opprimir a cândida virtude Dos que gemem debaixo do seu throno: Se leis não pondo ao ávido appetite, Gosa a satisfação, que tanto prezas, Dirás que o mesmo Deus deixa impunida Por frouxidão a sua iniquidade, E que lhe não destina calabouços Onde a pena receba de seus crimes? O estado feUz das almas justas, Nem de Deus fora digno, nem perfeito, Se sendo limitado a algum espaço Não se estendesse a toda a eternidade ; Pois que durando n'ella essa virtude Porque alcançaram esse dom supremo É conforme á justiça que em Deus seja O premio assim também continuado: Pelos mesmos principies são eternos Os castigos do impio: um juiz justo Não pôde perdoar um crime grave. Se d'elle o aggressor não se arrepende. Nos precitos ha sempre pertinácia, E por isso serão eternamente Da justiça divina castigados. Aos sanctos livros. . . porém não profanes Co'a Ímpia mão as paginas sagradas. Que estas tristes verdades nos revelam; chegar deve a este sanctuario Quem cheio de temor, e de respeito

18G NOTAS

As palavras adora, que elle encerra. Para te confundir, a outras fontes Mais dignas de teus vis impuros lábios Por tua confusão quero guiar-te, Porque vejas que o cego gentilismo Falto das luzes sanctas no evangelho, Por entre as grossas trevas da ignorância O dogma conheceu, que tu condemnas : Ouve Platão, que manda os assassinos Para o Tártaro negro, e tenebroso, Onde diz que os tormentos são eternos. De Sycione ao philosopho pergunta Quem lhe ensinou que havia dous logares Para o premio e castigo além da morte? Ouve Plutarco, que esta mesma crença Com a maior clareza te annuncia : finalmente gregos e romanos, Egypcios e chaldeos, verás em todos Este logar ao vivo retratado : Verás gemer Sisyphos carregados Go'o peso rude de infernaes penedos; Promethèos oppirmidos de cadêas, Ticios de abutres feros devorados, Tantalos, e outros mil, que submergidos No abrazado barathro nos pintam : São fabulas, eu sei: mas esta idéa! Posto que com ficções desfigurada, de uma tradicção a mais antiga Podia deduzir a sua origem. Escravo das paixões, a que te entregas.

NOTAS 187

Pretendes temerário collocal-as Par a par da virtude, blasfemando. De quem por torpes vicios as condemna ? Aprende a defendel-as, ignorante; Verás que da razão sendo inimigas Não se podem livrar de ser culpáveis. Perdendo a graça, dize, fementido. Qual é o meio de revindical-a? Duvidas de que o summo sacerdote Para estes infelizes naufragantes Da penitencia não deixou a taboa? Duvidarás que foi aos sacerdotes A quem deu o poder illimitado De atar e desatar os criminosos ? Se não duvidas, deves conferssar-me Que antes de proferirem a sentença Devem primeiro conhecer a culpa. Ajoelha, profano, mentecapto, Ante este tribunal, de que escarneces, Fonte de graça, que te fugiu d'alma. Respeita nos ministros, que a despendem, Não as suas fraquezas, que são homens. Mas aquelle de quem são commissarios. Não é Deus oppressor, não vingativo. Por vibrar com a dextra o raio ardente Contra os que seguem, como tu, com fúria Da carne os criminosos movimentos, Que sua lei, tua razão condemnam. Dizes que a punição excede o crime ; Blasphemo, que tu és! Piza, se podes

-188 NOTAS

Da oíTensa a infinita gravidade, E verás que o castigo não excede. Apóstata infeliz, como te atreves A tratar de tyrano o Omnipotente, O Deus, que no Sinay envolto em gloria Santas leis d'ísrael dictou ao povo? Achas indigno d'ellas o extermínio D'esses torpes idolatras, mil vezes Ingratos de seu Deus aos benefícios ? Arbitro absoluto dos viventes. Não pode, prescindindo inda da culpa. As vidas acabar, que lhe pertencem ? E conclues d'aqui, que o seu ministro Moysés incomparável, foi uni monstro De furor, impostura, e fanatismo? Hallucinado monstro, onde bebeste Para tua desgraça tal doutrina ? Podia um impostor fender as aguas Com a força enganosa dos prestigies, Fazendo pelo leito do mar-Roxo Caminho aos peixes conhecido? Poderia de um árido rochedo com o leve toque de uma vara Fazer sahir uma abundante fonte Para o povo com sede fatigado? Seria a sua astúcia bastante Para outros mil prodígios d'esta ordem. Em que de Pharaoth 05 mesmos magos Confessaram andar de Deus o dedo? Vai lêr sem prevenção os seus escriptos,

NOTAS 189

Que são retratos os mais vivos d'alma, ís'elles descobrirás quanto é diverso Aquelie original da negra cópia Que desenhou a tua meão indigna Por fascinar os olhos da innocencia. nos mesmos pagãos os elogios (Jue soube merecer-lhe o seu caracter. que da santa Egreja os testemunhos Indigno desertor assim desprezas, Para enganar a crédula innocencia, Que seduzir pretendes insensato, Confundes o amor, que Deus ordena, Com aquella paixão, aquella insânia, Que arrasta os homes ao nivel dos brutos?

Que idéa, dize, tens da Divindade? Confessas que é delicto aos similhantes Traçar damnos cruéis, injustos males, E pretendes sem culpa assassinar-lhe A virtude, roubando-lhe a innocencia? Indigno, inconsequente, mentecapto, Das luzes da razão abandonado. Que dogmatizar queres vãos delírios Uns a outros oppostos, e que ofTendem Natureza, Razão, e Divindade ; Degradas o teu ser, não consentindo Que haja além do sepulchro Eternidade. Aviltas a Razão, suppondo-a digna De approvar teu delirio extravagante; A Divindade oíTendes, quando a pintas Com attributos, que lhe são contrários.

•190 NOTAS

Esconde a face, e nunca as claras luzes Vejas do céo, cuja existência negas; Sepultado nas trevas da ignorância, A que te guiam voluntários erros, Costuma-te aos horrores d'esse abysmo, Em que apezar de o teres por chimera. Confessarás um dia mas tarde. Não ser uma illusão a Eternidade.

PAG. 47 -ARTE DE AMAR

No anno de 1822 appareceu em Lisboa impressa (anonyraa) em um pequeno folheto de oitavo esta peça, miseravelmente deturpada em muitos versos, e mutilada em alguns outros como facilmente poderá verificar o lei- tor curiooso, que possuindo por ventura o citado folheto, quizer confrontal-o com a presente edição. Aquelle que fôr versado no conhecimento de estyios terá talvez aventado que o d'esta composição se afasta notavelmen- te da elocução própria de Bocage. E na verdade, segun- do a asseveração de pessoas competentes, a obra é de Sebastião Xavier Botelho; mas também nos certificaram que tendo-a seu auctor submettido à correcção e censu- ra de Bocage, este emendara e polira muitos versos, in- troduzindo-lhe outros totalmente seus, pelo que nos pa- receu que de justiça devia achar cabida na presente coUecção.

NOTAS 191

PAG. 61 CARTAS DE OLINDA E ALZIRA

Estas famosas cartas gosam desde muitos annos da posse de andarem encabeçadas no nome de Bocage em diversas coliecpões manuscriptas, que temos tido presen- tes. Se por ventura não são d'elle, ao menos (que nós saibamos) não foram ainda attribuidas a outro auctor.

As seis primeiras epistolas tem sido impressas^ e por mais de uma vez, posto que mais ou menos corre- ctas, conforme os diversos transumptos que os editores poderam haver á mão para as suas edições. Quanto á sétima (pag. 90) devemos declarar que não somente julgamos ser esta a primeira vez que se imprime^ se não que estamos persuadidos de que poucas pessoas ha- verão noticia da sua existência. Pelo menos na immensa multidão de opúsculos e papeis d'esta natureza, que no decurso de muitos ânuos temos revolvido, apenas uma única vez deparámos com esta epistola junta ás suas companheiras, D'essa cópia extraimos a que nos serviu para a presente edição; onde, pela impossibilidade de fazer a necessária confrontação com outras cópias, dei- xamos ir alguns logares, que nos parecem viciados, mas que nos não atrevemos a emendar de motu próprio.

Í92 NOTAS

PAG. 106— SONETOS

Se levássemos a mira somente em engrossar o vo- lume, ainda que á custa de obras suppositicias, teríamos sem duvida duplicado, ou triplicado a serie dos sonetos que apresentámos, admittindo alli indistinctamente como de Bocage todos os que se lhe attnbuem nas muitas e variadas coUecçÕes manusciptas, que temos consultado, ou os que geralmente e sem exame se repetem como taes. Outro tanto dizemos no tocante a decimas, glosas, e outras similhantes composições. Mas entendemos que isto seria intolerável em uma edição feita para leitores intelligentes, os quaes teriam justíssimo direito para queixar-se de quem, como se diz, quizesse encampar- Ihes gato por lebre. Assim, resolvemos excluir tudo o que de próprio conhecimento ou em resultado d' exame critico e comparativo, se mostrava evidentemente alheio; porque quando tivesse alusões a pessoas, ou factos mais recentes ; porque sendo mal dirigido ou inepta- mente escripto, serviria de descrédito para o poeta, e muito mais denunciaria a falta de siso e de critica em quem ousasse attribuir-lh'o; finalmente porque muitas d'essas obras pertencendo aliás a auctores conhecidos, seria flagrante injustiça privar a estes da fama, ou do desar, que de taes producções deva provir-lhes.

NOTAS 193

Apezar da regra adoptada, alguns sonetos vão ain- Ja incorporados n'este volume, que supposto não desdi- gam do estylo do auctor, e tenham sempre corrido em seu nome, nem por isso nos julgamos auctorisados a dal-os por genuínos. Pelo que os marcámos respectiva- mente com a letra (D) querendo com ella significar que os temos por duvidosos, não affiançando por modo algum a sua authenticidade.

. PAG. 106 SONETO I

a pag. 173 tocámos alguma cousa com respeito a este soneto, escripto na occasião em que o exercito francez com mandado por Bonaparte invadira os estados ecclesiasticos (1797), chegando quasi às portas de Ro- ma, e ameaçando. o solo pontifício. V

O verso 9." :

D'ellas em vão rogando um pio arrojo,

envolve uma espécie de equivoco, ou como hoje se di- ria um calembouo-g ; porque Pio vi era o papa, que en-- tão presidia na universal egreja de Deus.

O penúltimo verso lô-se em algumas copias do mo- do seguinte :

Zumba, catumba; ficam-lhe em despojo, etc.

13

194 NOTAS

PAG. 110 -SONETO V Bocage, o folgazão, rostia o França.

Se O soneto foi escripto, como parece, pouco antes das contendas com os Árcades, isto é, entre os annos de 1791 e 1793, o Franpa nascido em 1725, devia então contar os seus 67 de idade ! Rostir é verbo neutro, que em sentido figurado significa mastigar. Fazemos aqui esta observação, porque notámos que alguém entrou em duvida acerca da verdadeira intelligencia do vocábulo.

PAG. 111 SONETO VI

Veja-se em geral a respeito dos sonetos marcados com a letra (D) o que acima dizemos no fim da nota a pag. 193

O de que ora nos occupamos, tem sido tão constan- temente havido como producção de Bocage, é tão popu- lar e conhecido, que não poderíamos dispensar-nos de aqui o reproduzir. Mas pede a verdade que se diga que iManoel Maria foi inteiramente extranho a esta composi- ção. Conforme o testemunho irrefragavel dos comtempo- raneos mais bem instruídos n'estas particularidades, o

NOTAS lar.

seu verdadeiro auclor foi João Vicente Pimentel Maldo- nado. É certo que ainda em vida de Bocage muitos lli'o attribuiram ; porém elle nunca o reconheceu por seu : ao contrario^ dizem-nos que consultando-o alguém a este respeito, respondera que lhe não agradava, mas que se o tivesse feito em lugar do verso

O teu cono não passa por honrado,

teria dito

Não passa o cono teu por cono honrado.

Outros mais reparos fez, que o sujeito de quem hou- vemos esta anecdota não nos pôde repetir, por lhe fal- tar a reminiscência de caso passado ha tantos annos.

Este soneto ha sido parodiado em diversos tempos, e com diíTerentes fins. Poremos aqui o seguinte, feito sobre pensamento análogo, e que se diz ser de José An- selmo Corrêa Henriques :

SONETO

Não lamentes, Alcino, o teu estado, Corno tem sido muita gente boa ; Cornissimos fidalgos tem Lisboa, Milhões de vezes cornos tem reinado.

19G NOTAS

Sicheu foi corno, e corno de um soldado : Marco António por corno perdeu a c'roa; Amphitrião com toda a sua proa Na Fabula não passa por honrado ;

Um rei Fernando foi cabrão famoso (Segundo a antiga letra da gazeta) E entre mil cornos expirou vaidoso ;

Tudo no mundo é sujeito á greta: Não fiques mais, Alcino, duvidoso Que isto de ser corno é tudo peta.

PAG. 112 -SONETO VII

Nas «Poesias Satyricas inéditas de M. M. B. do Boca- ge, colligidas pelo professor A. M. do Couto» (Lisboa 1840), vem este soneto a pag. 28, e tem ahi o seguin- te titulo: A um musico velho chamado L. F. Não alcançamos alguma outra indicação, nem mesmo vimos outras copias d'este soneto, com as quaes podesseraos conferil-o.

PAG. 113 - SONETO YIII

Diz-se que este soneto fora escripto em Gôa e diri- gido a D. Francisco de Almeida, fidalgo de raça mestiça,

NOTAS 197

cuja índole e costumes o poeta quiz assim escarnecer. Derramou por todo elle vocábulos da língua canarina, cuja explicação debalde se procurará nos díccionarios. Pessoa que suppomos bem informada, nos assegura que tambió quer dizer tabaco: fusco, peido; gu, trampa, etc. Valha a verdade!

PAG. 115 E 116 SONETOS X E XI

Como a historia da composição d'estes sonetos se encontra amplamente descripta na «Livraria Glasica» (tomo XXIII), para aqui a transcreveremos, em obse- quio aos leitores, que não tiverem à mão aquelles fo- lhetos.

«Era Santarém a mais cara residência de Bocage. Tractado como irmão era casa do Senhor Salinas de Benevides, ali se esquecia durante mezes. Era chegado o tempo da feira, em que, segundo o uso, grande mul- tidão concorria áquella terra.

Á hospitaleira porta de Salinas vão, sabedores do benévolo agasalho, batendo amigos e extranhos : são onze horas da manhã, quando pela centésima vez se to- ca a campainha ! Dous varatojanos, moídos e suados, mais o padre mestre hercúleo e nédio, e o leigo moço e mirrado, entram para a sala commum. Trazendo-lhe

l'.)3 NOTAS

dous copos, um de vinho, outro de agua; o mais velho, sem dar satisfações, precipitou-se sobre o do vinho, que o leigo viu com olhos de inveja emborcar até meio, re- solvendo-se então humildemente a pegar no copo d'agua. Mal não era feito o movimento, quando irado o padre mestre por ver a audácia com que o seu subalterno, faltando ás regras da santa obediência, bebia a agua de moto próprio, volta-se ainda em cima, para o estafado moço, berrando-lhe : O irmão me pediu licença para beber isso?

«Bocage, que de toda a scena nem um meneio per- dera, ergue-se furibundo, vai dentro, e apodera-se de um cajado, com que sáe para a rua a desancar frades. Esteve divino : vociferâções, epigrammas contra frades borbota vâín-enr"'cáchão .

«Quiz a fortuna que a um canto da feira lobrigasse um cardume de gente, ralhando, ameaçando, rindo e gritando. Encaminhou-se para a multidão, que rodeava uma loja ambulante de bonecos de barro. E ahi lhe contaram como a mais rica peça da loja, era um frade de louça d'£xtremoz, atacando uma freira; que passara aquelle frade de carne, que ainda ia ao longe, o qual encolerisado arrebatara o escandaloso grupo, o esmi- galhara e conculcara aos pés, continuando impávido em seu caminho.

«Imagina-se como Bocage ficaria! Entra a correr,

NOTAS 199

clamando como possesso : « Cerquem-me o frade ! . . . agarrem-me o frade, que ahi vai uma saraivada de so- netos ! . . . »

E com eífeito, á queima roupa lhe desfechou uma dúzia de sonetos (de que apenas se conservam como amostra os dous que damos no texto)

Continuou ainda a disparar epigrammas a frades, taes como os seguintes, que nunca foram impressos :

Entre um frade, e entre um burro Ha tanta conformidade, Que ou o frade é pae do burro Ou o burro é pae do frade !

Casou um bonzo na China Com uma mulher feiticeira ; Nasceram três filhos gémeos, Um burro, um frade e uma freira etc. etc.

PAG. 120 SONETO XV

O seguinte é o titulo d'este soneto na collecção de Couto, citada :

200 NOTAS

kA um clérigo fulo, Deão de Angola, que aqui veio a requerimentos, e era corcovado naturalmente ; cor^ ria o armo de 1800.»

PAG. 122 SONETO XVII As horas do prazer voam ligeiras.

foi mote dado, a que este soneto serviu de glosa, bem como o que adiante se trascfeve sob numero XXX.

PAG. 123 - SONETO XVIII

É dirigido ao padre Domingos Caldas Barbosa [Le- reno Selinuntino) no tempo das contendas com os Ár- cades (vejam-?e para a historia d'esta guerra a «Livra- ria Clássica» tomo xxiii^ e o «Estudo Litterario» no tomo VI da nova Edição das Poesias de Bocage a pag. 329 e seguintes).

Como em qualquer das duas obras, nos logares que deixamos apontados, se encontram varias poesias satyri- cas, com que os contendores e rivaes d'Elmano o brin- daram, em desforra e retribuição de muitas, que elle lhes dirigira (as quaes também podem lêr-se no tomo i da citada edição de Bocage de paginas 341 a 363) pa-

NOTAS 201

rece-Dos que os leitores nos haverão em graça que lhes completemos a collecção d'essas obras, dando-lhes incor- poradas não algumas das impressas, que por cir- cumstancias e motivos óbvios se haviam publicado com suas lacunas, restabelecendo-as aqui na sua integra, mas também outras, de que por ventura não terão co- nhecimento. Ahi vão portanto em seguida todas as que conservamos d'esta espécie.

SONETO

Emquanto a rude plebe alvoroçada Do rouco vate escuta a voz de mouro, Que do peito inflammado sáe d'estouro Por estreito bocal desentoada :

Não cessa a cantilena acigarrada Do vil insecto, do mordaz besouro ; Que á larga se creou por entre o louro De que a sabia Minerva está c'roada:

Emquanto o cego atheu, calvo da tinha, Com parolas confunde alguns basbaques, Psalmeando a amatoria ladainha :

Eu não me posso ter; cheio de achaques, Cangado de lhe ouvir «Bravo ! Esta é minha!» Gago sem me sentir, desando em traques.

(Anonymo.J

202 NOTAS

SONETO

Morreu Bocage, sepultou-se em Gôa! Chorai, moças venaes, chorai, pedantes, O insulso estragador dos consoantes. Que tantos tempos aturdiu Lisboa !

Por aventuras mil obteve a c'rôa Que a fronte cinge dos heroes andantes ; Inda veio de climas tão distantes A toa vegetar, versar á toa :

Este que vês, com olhos macerados, Não é Bocage, não, rei dos bregeiros. São apenas seus olhos descarnados :

Fugiu do cemitério aos companheiros ; Anda agora purgando seus peccados Glosando aos cagaçaes pelos outeiros.

{B. M. Curvo Semedo.)

SONETO

Esqueleto animal, cara de fome, De Timão, e chapéu á hollandeza, Olhos espantadiços, bocca acceza, D'onde o fumo, que sáe, a todos some :

NOTAS 203

Milagre do Parnaso em fama e nome, Em corpo gallicado alma franceza, Com voz medonha, língua portugueza, Que aos bocados a honra e brio come :

Toda a moça, que d'elle se confia, É virgem no serralho do seu peito ; Janella, que se fecha, putaria !

N'este esboço o retrato tenho feito; Eis o grande e fatal Manoel Maria, Que até pintado perde o bom conceito.

(Anonymo.)

SONETO

Ha junto do Parnaso um turvo lago, Aonde em rans existem transformados Os trovistas de cascos esquentados. Cérebro frouxo, ou de miolo vago ;

Por mais infâmia sua, e mais estrago Doou-lhes Phebo os ânimos damnados, P'ra que exprimam os versos desazados Os seus destinos vis, nos quaes eu cago:

Aqui Bocage vive, e d'aqui ralha, E co'a tartarea lingua ponti-aguda Bons e maus, maus e bons, tudo atassalha

204f NOTAS

É vil insecto, e o génio atroz não muda, Bem como a escura còc não muda a gralha, E o hediondo fedor não perde a arruda.

(/. Franco.)

EPIGRAMMA

De todos sempre diz mal O Ímpio Manoel Maria ; E se de Deus o não disse, Foi porque o não conhecia.

(D. Caldas Barbosa.)

SATYRA

Impondo duração além das eras Numen te eriges, fanfarrão Bocage, Envesgando raivoso o vasto mundo Ante o teu throno serpeando a medo. Usurpador de louros soberanos. Ah ! não aviltes o ApoUineo sólio Em que é dado reinar a augusto vate. Que equilibrando na invenção madura Potente phrase, se abalança aos astros, Até c'os deuses praticar soberbo. Os titules sagrados me apresenta, Com que alardeas profanando Apollo:

NOTAS 205

Esse idyllio, que tens em gran portento,

Pensas te salva da vorage eterna?

Falle o Tritão, que tu fizeste amphibio,

Pondo-o na terra, namorando a nympha.

Sonetos, glosas lhe attrahis louvores,

Cheios de vento, que empanturra o Paula ;

Pècco epigi^amma, que afugenta o riso,

Fabulas tuas, traducções franjadas;

Essas cantatas de Parny são roubos,

Em que sedento de invenção campeãs.

Mas, Tântalo phebêo, em vão cobiças

A custa alheia eternisar teu nome.

Busco debalde acção nas obras tuas,

Que o Tesejado fim demande altiva;

És emprestado vate : Itália o diga,

Falle a Gallia também, d'onde saquêas

Sem ter pejo os relâmpagos de gloria.

Tentas medir-te c'o soberbo Ovidio.

Na apoquentada epigraphe acoutado

D'essa sem par metamorphose eterna,

Aonde o triste pensamento enjoa.

Pela enfadonha somnolenta phrase !

Nas satyras não fallo venenosas,

Em que impera a calumnia, sócia tua.

Ou te divertes com tremendas caras.

Com trombas, que se vão sumindo em lenços.

Ou proferindo, como sempre, á tôa

Mais outros chochos palavrões ensossos,

Com que ha pouco louvaste o Ersaunio verme.

Porque fallar d'elle é dar-lhe a vida.

206 NOTAS

Tu lhe mandas sequer desprenda um verso, Um pensamento eu te peço ao menos, Que nas azas do metro e sentimento Não toque ouvidos só, como os teus versos, Mas súbito alvorote o peito arfando; Echo de auetores, pequenino Elmano, Sonoroso, monótono, apoucado. Que não sabes tirar pulsando a lyra Sem, que arremede a voz da natureza Hyperbolico auctor desesperado D'oucas repetições as obras matas, Coalhas a podre, insupportavel massa, Métrico impulso te flammeja a mente; Mas olha inda o declive em que és por ora De remontar á brilhadora esphera! Para colher do Pindo egrégio louro Não basta deslizar canoro accento, Soltando de improviso o dique ás vozes.

Mas debalde minha alma se afadiga, Que os meus consellios te valem risos; Porém desabafei, mostrei-te aos pangas. Que embasbacados te lauream nume, Qual o pastrano camponez papalvo, Pasma, encarando da cidade os nadas.

PAG. i^/t SONETO XIX

A respeito tia origem d'este soneto contou-se-nos que tendo Bocage sido iniciado em uma das LL.*. Ma-

NOTAS 207

cónicas^ que n'aquella epocha existiam em Lisboa (de que era Yen,-. Bento Pereira do Carmo, e Orad.*. José Joaquim Ferreira de Moura, ambos deputados às Cortes de 1821 e 1823, e bem conliecidos na historia politica dos nossos tempos modernos) frequentara durante al- guns mezes aquella associação, assistindo ás suas reu- niões, até que desavindo-se um dia com os Ir.', por qualquer motivo que fosse, em um accesso de cholera rompera extemporaneamente D'este soneto, que rasgou depois de escripto; mas alguém o tinha copiado, aliás succeder-lhe-ia o mesmo que a tantns outras pro- ducções do auctor, irremediavelmente perdidas.

Doctor macaco José Joaquim Ferreira de Moura tinha eflfectivamente uma physionomia amacacada co- mo ainda se mostra do seu retrato, e gaguejava algum tanto, segundo dizem os que o conheceram.

PAG. 123 -SONETO XX

Tanto este como os que se seguem XXI, XXII, XXIII e XXIV acham-se impressos no tomo I da cita- da edição de Bocage ; mas pareceu acertado reprodu- zil-os por conterem variantes; como se verá da respe- ctiva confrontação de cada um d'elles com o que lhe corresponde. se encontrará também a indicação dos

208 NOTAS ,

seus assumptos, que por supérflua deixamos de trasla- * dar aqui. í

PAG. 130— SONETO XXV

Na collecção de Couto, por vezes mencionada, vem este soneto com o seguinte titulo, que fielmente copiamos :

« Em dialogo, a certo Fidalguinho que, pedindo vir « com licença a Lisboa da guerra do RoussUlon por « se deixou ficar ; até que o obrigaram a voltar : «o estylo é rasteiro, attentas as pessoas que fallarn.»

PAG. 131— SONETO XXVI

A propósito d'e3te soneto, ajuntaremos aqui outros de assumpto análogo, que todos teem sido em diversos tempos attribuidos a Bocage, mas que de certeza sabe- mos lhe não pertencem. O primeiro é de Fr. José Bote- lho Torrezão, frade paulista, fallecido em 1806; o segundo de José Caetano de Figueiredo, oílicial maior que foi da Junta do Commercio; o terceiro de Fran- cisco Manoel do Nascimento. Dos outros não podemos assignar ao certo os nomes de seus auctores.

1

NOTAS 209

Do throno excelso nos degraus sagrados D'Assiz o patriarcha ajoelhara : E consta que d'esta arte se queixara Ao Deus, que rege o céo e move os fados :

«Grande Deus, com que pejo relaxados «Vejo os filhos, que outr'ora abençoara ! <Já entre elles o vicio se descai-a, «Já de Ghristo não são, da soldados !

«Eu te rogo, senhor, que aos loucos brades, «E lhe avives a no paraiso?. . Riu-se de Deus, e lhe disse : Não te enfades :

—Frades não flz, de frades não preciso ; Quando o mundo souber o que são frades, Ha de extinguil-os, se tiver juizo.

Encontrei certo Leigo franciscano, Com os olhos no chão, pedindo esmola; Dos hombros lhe pendia alva sacola, Celeiro, que pão p'ra todo o anno :

Queria o leigo armar-me um bello engano, E fazer-me cahir na carriola; Mas eu que sigo esta moderna escola, chicote daria ao tal magano : u

Gomo é possível que a nagão contente Mantenha ufana, e liberal soccorra A tão inútil e ociosa gente ?

EUes tem que comer á tripa-forra ; Eu, por mais que trabalhe, ando indigente. Se o torno a encontrar, dou-lhe co'a porra!

Ghristo morreu lia mil e tantos annos ; Foi descido da cruz, logo enterrado; E ainda assim de pedir não tem cessado Para o sepulchro d'elle os franciscanos !

Tornou a resurgir d'entre os humanos; Subiu da terra ao céo, está sentado; E á saúde d'elle sepultado Comem á nossa custa estes maganos :

Cuidam os que lhes dão a sua esmola Que ella se gasta na funcção mais pia. . . Quanto vos enganais, oh gente tola !

O altar mór com dous cotos se allumia : E o fradinho co'a puta, que o consola. Gasta de noute o que lhe daes de dia.

NOTAS 211

Padre Frei Cosme, vossa reverencia Se engana, ou enganar-nos talvez tenta : Quem as riquezas dá, quem nos sustenta, Não é de Deus a sunima providencia ?

Pois logo com que cara ou consciência Esmola pede, e arrepanhar intenta Para o Senhor da Paz, ou da Tormenta? Tem Deus do homem acaso dependência?

Tire a mascara pois, largue a sacola, E deixe o povo, a quem impunemente Em nome do Senhor escorcha, e esfola:

A viuva deixe a esmola, e ao indigente ; E não queira, hypocrita farçola Foder á custa da devota gente.

Lingua mordaz, infame, e maldizente, Não ouses murmurar do bom prelado : Inda que o vejas com Alcippe ao lado. Amiga não será, será parente :

Geral da Ordem, pregador potente, No jogo padre-mestre jubilado, E também caloteiro descarado Pode ser que o repute alguma gente :

'Jhi NOTAS

E que te importa que fornique a moça? Que pregue o evangelho por dinheiro ?

Que em vez de andar a ande em carroça? \

i

Talvez que d 'isso seja um verdadeiro -j

Dos monges exemplar, da Serra d'Ossa, ' i

Pois que dos monges é hoje o primeiro.

l PAG. 132— SONETO XXVII '

Conforme a opinião de alguns, este soneto é do des- embargador Domingos Monteiro d' Albuquerque e Ama- ral ; outros porém aíTirmam ser de Bocage. Os leito- res assentarão o juizo que melhor lhes parecer.

PAG. 134 SONETO XXIX

Tanto este, como o que adiante segue sob n.° XXXll, \ andam em algumas collecções attribuidas ao Abbade de ' Jazente. .

PAG. 139 SONETO XXXIV J

I Para perfeita inteliigencia d'este soneto, que de \ outra sorte ficaria talvez impenetrável à percepção dos ' leitores, ajuntaremos aqui resumidamente a historia que i forneceu o assumpto de tal composição, a qual não dei- ^ xa de ser curiosa, e vai Qelmente extrahida dos aponta- mentos, que a esse respeito nos foram communicados. '

NOTAS 213

HISTORIA MARiYlLHOSA DA INTITOLADA BEATA UWÀ

Junto á porta de Alconchel, na cidade d'Evora,>'ivia na companhia de seus pães uma beata, moça de vinte e dois annos, e de muitos bons bigodes, chamada Anna de Jesus Maria. Esta serva do Senhor fora por algum tempo confessada de fr. João de Santa Euphrasia, da ordem dos Carmelitas descalços, e morador no convento dos Remédios, da mesma cidade : porém, morrendo este, tomou-a debaixo da sua direcção espiritual um fr. Fé- lix, que passados tempos teve de ausentar-se da cidade e antes da sua partida traspassou a beata a outro mas- marro da sua ordem. Este ultimo, satisfeito em extremo de tão bella acquisição, dava a Deus contínuos louvores por tel-o ali enviado, afim (segundo elle dizia) de diri- gir e encaminhar para a bemaventurança aquella alma predestinada, cujas singulares virtudes apregoava por toda a parte á bocca cheia. Depois de terem ambos abu- sado por algum tempo da credulidade e fanatismo, não do vulgo ignorante, mas até de indivíduos de mais elevada çsphera, que por suas circumstancias deveriam julgar-se fora do alcance de tão ridículas suggestões, entenderam o frade e a confessada que podiam levar a audácia njais longe, e concertaram entre si uma farça.

-214 NOTAS

de que esperavam colher um resultado maravilhoso.

Começaram pois a assoalhar entre os seus conhecimen- ]

tos que por divina revelação fora annunciado á beata ;

que no dia de S. Miguel, 29 de Setembro de 1792, pe- i

las nove horas e meia da noute havia de infallivelmen- :

i

te morrer; querendo Deus charaal-a a si no próprio ins- i

tante em que completava os seus vinte e dois aunos. A '

noticia d'esta espécie de prophecia espalhou-se veloz- ]

mente por toda a cidade ; isso era o mesmo que os in- \

teressados desejavam ; e grande numero de pessoas,

preocupadas pela opinião de virtude da santinha, guar-

davam anciosamente o cumprimento da promessa divi- ;

na. Chegado que foi o dia, em que devia realisar-se o

vaticínio, o arcebispo D. Joaquim Xavier Botelho de Li- \

raa, que era, ou fingia ser um dos que mais acreditavahi ;

nos embustes da beata e do seu director, quiz autheo- ;

ticar o milagre, em modo que não ficasse logar para as j

duvidas dos incrédulos. Mandou portanto sair da casa da ;

santa o padre confessor e o prior do convento, seu fiel ]

companheiro; e ordenou a quatro clérigos da que í

alternadamente assistissem dois e dois á beata, dia e \

noute, até chegar a hora prophetisada, para serem tes- *

temunhas do seu miraculoso transito. ;

Cumpriram os clérigos a determinação do prelado; i

e tudo correu na melhor ordem. Porém vendo que o í

praso promettido era passado, e que a santinha se con- '

NOTAS 215

servava de perfeita saúde, sem que apresentasse o mais leve indicio de uma morte próxima, entenderam que deviam relirar-se; despediram-se d'ella, e abalaram pa- ra suas casas. Ainda bem não tinham cruzado a porta, e o pae da menina corria apoz elles, a annunciar- Ihes que n'aquelle mesmo instante dera a alma aocrea- dor ! Voltaram altonitos os bons clérigos, pezarosos sem duvida de não terem presenciado o prodígio; acha- ram-n'a com effeito amortalhada no habito de Santa Theresa ; e para ser mais cabal o milagre, tinha as mãos e pés estigmatisados com chagas similhantes às do nos- so divino redemptor ! Quem ousaria ainda duvidar da verdade, depois de tão claramente manifestada ? Os clé- rigos promptam.ente se persuadiram e correram logo a levar ao arcebispo a noticia do successo.

Entretanto appareceu o padre confessor, declarando aos circumstantes, que começavam a aílluir, ter sido elle o que mesmo do convento impozera preceito à san- ta para que morresse, logo que os clérigos saíssem ; porquanto sem permissão d'elle o não podia fazer. Apre- sentou-se em seguida a communidade de cruz alçada, e começou a altercar com o parocho de S. António acerca de quem levaria aqueile bemdicto corpo para a sua egreja. O povo amotinado corria em chusma para a ca- sa da beata; lodos pretendiam ver com os próprios olhos tão estupenda maravilha. . . Eis que o frade começa a

216 NOTAS

pregar com grande anciã, preconisando a defuncta pe- la maior de todas as santas nascidas em Portugal ; nar- rou um milhão de suas virtudes e milagres ; aíQrmou a todos que Deus estava n'ella; disse-lhes que a adoras- sem : e finalmente para mais enthusiasmar os pios ou- vintes, volta-se para a bisbilholeira que jazia amorta- lhada e diz-Ihe : «Anna ! Em virtude da sanita obediência abre os olhos!» (E ella os abriu, tamanhos como duas cebolas). «Anna! Cruza os braços (E a defuncta, que os tinha estendidos, os cruzou effectivamenle). «Anna! Aben- çoa os que aqui estamos (E ella assim o fez). Man- dou-lhe que declarasse onde estava : ella respondeu que tinha ido ao céo, e que encontrara fr. João de Santa Euphrasia, que eslava dizendo missa, o qual lhe dera a chuchar metade do cálix ! Finalmente satisfazia com presteza a tudo quanto o frade lhe ordenava. Os espe- ctadores enternecidos á vista de tantos prodígios, e la- vados em lagrimas, começaram humildes a beijar-lhe os pés, tocando lenços, contas e verónicas nas suas cha- gas. Repicaram-se os sinos por todos os campanários da cidade ; começaram de aflluir em tropel os coxos, os ce- gos e paralylicos, que vinham com muitas lagrimas implorar o remédio para seus males: mas infelizmente para elles saiam como entravam.

Crescia de ponto a devota multidão, e cora ella a desordem, até que as auctoridades traclaram de provi-

NOTAS 217

denciar, mandando vir tropa, que poz fora a todos, com promessa de voltarem, ficando a final sós na casa o pae, e a mãe com a supposta defuncta. O oíTicial que com mandava a tropa, tendo-se retirado para baixo, che- gou porém passado algum tempo casualmente á porta : e como ouvisse rumor de vozes no quarto onde jazia a santa amortalhada com tochas accezas, empurra a porta de repente, e acha-a sentada muito á vontade, conver- sando sem cerimonia com o pae e mãe ! Ella mal que o viu, estendeu-se novamente, e deixou-se morrer outra vez querendo sustentar a impostura : e os pães com toda a presença d'espirito contaram ao official que sua filha lhes estava declarando o lugar em que no convento dos Remédios queria ser sepultada. Aquelle, que desconfiava de tanta maranha, deu logo parte do facto ao Arcebispo. Vieram médicos, e acharam-na mais viva que o azougue !

Descoberta a impostura, o povo amotinou-se nova- mente: mas d'esta vez com o intento de dar cabo da beata, a quem não podiam' perdoar a illusão em que haviam cabido. A final foi mandada presa para o reco- lhimento de Santa Martha. O reverendo padre confessor fugiu, e todos os seus confrades foram suspensos das ordens, e degradados para um convento do Algarve. Tudo porém ficou impune; porque passado algum tem- po a beata sahiu do recolhimento, e casou com um sol-

218 NOTAS

dado, e os frades regressaram para o seu convento, não se fallando mais em tal.

Se a devota pantomina tivesse ido para diante, é provável que mudariam a moça para alguma cella, e que d'esta sahissem para a roda netos de Santa There- sa ; como o corpo havia necessariamente de desappare- cer do logar do deposito, os frades fariam crer á pobre gente que ella subira ao céo em corpo e alma. Oue novo ramo de commercio tão lucrativo para a commu- nidade, e tão proveitoso para as beatas bonitas ! E quantas d'estas se terão engolido no mundo !

Além do soneto de Bocage, que deixamos transcri- pto no texto, a que a presente nota serve, de illustra- ção, outros mais appareceram ao mesmo assumpto. Os seguintes, que não deixam de ter seu merecimento, at- tribuem-se a Miguel Tibério Pedagache :

I

De c'rôa virginal a fronte ornada, Em lúgubres mortalhas envolvida A beata fatal jaz estendida, De assistentes contrictos rodeada:

Um se tem por salvo em ter chegada Ao lindo a bocea commovida : Outro protesta reformar a vida: Porém ella respira, e está corada !

NOTAS 219

Que é santa, e que morreu, com juramentos Affirma audaz o façanhudo frade, E que prodígios são seus movimentos :

O devoto auditório se persuade: Renovam-se os protestos, e os lamentos: Triste religião ! Pobre cidade !

II

Acredite, sentado aos quentes lares Nas noutes invernosas de janeiro, Lendo em Carlos Magno o sapateiro As proezas cruéis dos doze Pares :

Grêam que vem as bruxas pelos ares A chupar as creanças no trazeiro ; Comam quanto lhes diz o gazeteiro. De casos, de successos singulares :

Porém, que uma beata amortalhada, Com a cara vermelha e corpo molle, E sancta por um frade apregoada ;

Que respire, que os braços desenrole, E seja por defuncta acreditada, Isto somente em Évora se engole!

220 NOTAS

Voltando ao soneto de Bocage, digamos aqui algu- ma cousa com referencia ás distinctas personagens n'elle commemoradas.

Heroe da bola chata, etc. Era D. José da Gosta, marechal de campo, e governador d'Evora, que por morte de seu irmão mais velho veio a ser conde de Soure, e tenente general. Foi elle o primeiro que com sua filha bastarda D. Maria José tiveram a honra de ser abenpoados pela santa beata, e de lhe beijarem os pés, tocando seus lenços nas chagas, que ahi se offereciam á veneração dos fieis, feitas prodigiosamente por meio do nitrato de prata !

Falso pastor, etc. O Arcebispo D. Joaquim Xavier Botelho de Lima, do qual acima falíamos.

O respeitável Cunha, etc. António da Cunha Sou- to-Maior, sargento mór do regimento de cavallaria d'E- vora, que não obstante ser tido por homem instruído e desabusado, foi o segundo que teve a alta ventura de beijar o á santa !

PAG. 141 A 157 SONETOS XXXVI A LII

Todos os sonetos comprehendidos nas paginas e sob 03 números indicados, foram por nós trasladados ha quasi trinta annos de um caderno, que continha promíscua-

NOTAS 221

mente obras de Bocage, e de Pedro José Constâncio, mas sem a devida separação; tornando-se por isso diíTicul- toso, se não impossível, descriminar com certeza entre ellas as que pertencem a um ou outro dos dois poetas; muito mais quando os estylos de ambos ofFerecem ás vezes tal similhanpa, que deixa indeciso o juizo mais experimentado.

Por conseguinte pareceu preferível a idéa de os re- produzir aqui na sua totalidade ; o leitor poderá fazer a respeito de cada um as observações que a sua critica lhe suggerir, e estremal-os-hacomo fôr do seu agrado.

Pedro José Constâncio, a quem indubitavelmente per- tencem alguns dos sonetos a que nos referimos, foi ba- charel formado em cânones pela universidade de Coim- bra, filho de Manoel Constâncio, cirurgião da camará da Rainha D. Maria i, e conseguintemente irmão do nosso conhecido escriptor Francisco Solano Constâncio. Falle- ceu antes de 1820, e conviveu no seu tempo com a maior parte dos poetas contemporâneos, particularmente com Bocage, e José Agostinho. Homem de vida extra- vagante e desregrada, soffria por vezes ataques de alie- nação mental, chegando a apresentar-se ml em pleno dia ás janellas da casa onde morava, no deserto da rua larga de S. Roque ! Compoz grande numero de poesias, quasi todas licenciosas, e entre estas um poema allusivo á fornicação dos cães dentro das igrejas, que sendo

±22 NOTAS (

denunciado ao Intendente Geral da Policia por Pedro Ale-^ xandre Cavroé, deu logar á reclusão do poeta por qj-j guns dias na cadeia do Limoeiro ; e poderia ter peores consequências, se não interviessem os rogos e empenhos de alguns amigos, que se interessaram por elle para, com o Intendente. Enfermidades geradas pelos excessos] venéreos a que se dava, sem escolha nem reserva, o le- varam aura estado valetudinário, atrophiaDdo-lhe as fa-^i culdades, e tornando-o incapaz de toda a applicaçãoJ Yictima de seus desregramentos, falleceu antes de com- pletar quarenta annos de edade. ' Entre as poucas composipães suas, que se imprimi- ram, ha um soneto, que por engano foi inserido como de Bocage, pelo editor do 4.** tomo das obras poéticas d'este poeta, que sahiu à luz em 1812 ; posto que, mais bem aconselhado, o mesmo editor o expungisse depois na segunda edição do referido volume feita em 1820. Cremos que os leitores não desgostarãn de aqui o verem^ pois que n'outra parte se não encontrn. ;

SONETO i

!

Para illudir o suspirado encanto, l Por quem debalde ha longo tempo ardia,

« Um ninho achei, oh Lésbia (eu lhe dizia) 1

« Gomo é dos pães dilicioso o canto ! » j

NOTAS

223

Assim doloso me expressava, em quanto Um alegre alvoroço em Lésbia eu via : «Ah! onde o deparaste?» (ella inquiria) (íVem (lhe torno) comigo ao do acantho:»

Por um bosque me fui co'os meus amores, Pergunta aos ramos pelo implume achado, E respondendo vão meus furores:

Conhece... quer fugir ao laço armado. Na encosta a vergo, que afofavam flores, Beijo-lhe as iras. . . fique o mais calado.

FIM

índice

PAG.

Ribeirada, poema 7

A Manteigui, poema » 21

A Empreza nocturna 2>>

Epistola a Marília [Pavorosa illumo, etcj 36

Fragmento de Algeu 44

Arte de Amar 47

Cartas de Olinda e Alzira (VII) G l

Sonetos (LID lOG

Miscellanea. 158

Elegia á morte de uma alcoviteira iG5

Notas 470

« Refutações á Pavorosa i75

« Sonetos, etc. contra Bocage 192

(< Sonetos contra frades 200

«Sonetos á Beata d'Evora 218

<' Soneto de P. J. Constâncio. 222

^ík:^?:^mz-

PQ 9261 B27Á17 1900

Barbosa du Bocage, Manuel Maria de Poesias

UNIVERSITY OF TORONTO LIBRARY

.^.#>;^/

tr>-'?^-

. ,í* '^'}

-■^>,\v>';'r\^^'^ i;^"-r:-

^>^

m: -:m^.:m.

»-«■

M':M

m "m-

H^«^«

m-lM

'^*W:"^Èf'':

*€-5«5%^

Ji ••#>:-.. «'■»** •*,

■;j:*^w-.

■i:..^^.;€'

'í# -■--^:.;<jf^--- :íi^'

r:m:.:MZ^^::M-.

m- m m::m:zm::M.

r ■:»

^m....,,-^..>^^^.ç#\,iai;

''■ ;^:í^ '^M "^""'^ííl

w.-::t

nk %^

È^''

'tó- .^.

:.,.í^-. !■'■'

1^ W-

:i

' m m B- 4

j-^l^^

^íífe.. ' ^

•íiSíi/""''^

«T:m:;:i5

l

í'-r "i?

'^. ' -^^

i^:'":^^^:3^:r

% ...-^

m:::m:'^::

m.:Mi . ,

■■■■

■■■i

■■■4

■■■■

1

■■■

^

1

mjm:

«v m

^.'M , >:«. 1

.-■^ m